Joaquim Manuel de Macedo é conhecido por romances como A Moreninha. Mas quem lê outros títulos do autor, como A Luneta Mágica, consegue entrever que há muito mais do que o um “Romantismo” estrito em sua obra. A Nebulosa, “talvez o melhor poema-romance do romantismo [brasileiro]”, segundo Antonio Candido é uma dessas obras que resistem a classificações. O texto ficou mais de um século e meio fora de circulação e agora volta às prateleiras, com apresentação de Ângela Maria Gonçalves da Costa, que fala a respeito nesta entrevista:
O livro é tema de sua tese. Por que escolheu esse tema?
Ângela Maria Gonçalves da Costa: Escolhi esse tema por ser um poema esquecido pela crítica acadêmica e estar há anos fora do mercado editorial, sendo raros seus leitores, devido às dificuldades de acesso à obra. Me interessou também em A Nebulosa a problemática que o poema traz, já que está longe das exigências da produção de uma literatura nacionalista. É um poema mais próximo dos sentimentos universalistas e da vertente ultrarromântica. Um canto nórdico medieval produzido em terras tropicais no século XIX.
Como foi feita a pesquisa e que desafios ela impôs?
AMGC: A pesquisa começou com a procura da resposta para uma indagação: Por que um poema de sucesso extraordinário na época da publicação e nos anos posteriores acabou caindo no esquecimento? Com a curiosidade aguçada, alguns livros de história literária brasileira foram consultados para buscar informações sobre o poema. Um comentário elogioso de Antônio Candido, dizendo que “talvez fosse o melhor poema-romance do Romantismo” deu pista de que estava no caminho certo. O interesse foi aumentando. A pesquisa se estendeu para bibliotecas públicas e particulares de Campinas, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais para encontrar a obra. Foram encontrados cinco exemplares da 1ª edição e nove exemplares da 2ª edição, número satisfatório para uma obra não editada há um século e meio, o que levou a pensar na hipótese de tiragem alta e com prestígio na época. Depois do contato com o poema, a próxima fase foi pesquisar a fortuna crítica existente, ou seja, qualquer notícia ou comentário sobre o poema que apareceram em periódicos, cursos e histórias literárias entre os séculos XIX e XXI. Me deparei com vários desafios, como entender o porquê da obra cair no esquecimento, o que levou Macedo a enveredar pela poesia e destoar de outros poemas que apareceram na mesma época. Entretanto, merece destaque a busca pela localização de algumas críticas ao poema que Galante de Souza, nos anos vinte, dizia existir. Segundo ele, no Jornal A Atualidade, em 1860, Bernardo Guimarães escreveu uma série de censuras na Parte Literária do referido jornal, no entanto lamentava não ter localizado nenhum exemplar. Tânia Serra também deu notícia dessas críticas, mas garantiu não ter encontrado nenhuma informação. A busca a esse periódico durou meses e nenhuma pista. Quando já pensava em desistir, estava pesquisando no arquivo Edgard Leuenroth, na Unicamp, quando as sete partes da crítica de Bernardo Guimarães apareceram na minha frente, em ótimo estado de conservação. Foi muito gratificante.
A senhora aponta uma ligação desta obra com a poesia celta. Tendo sido escrita em um momento de valorização da “cor nacional”, não seria surpreendente se a obra tivesse passado despercebida (ou negativamente criticada) no momento de sua publicação; mas não foi isso o que ocorreu. O que, em sua opinião, levou A Nebulosa a ter tão boa recepção crítica no primeiro momento?
AMGC: Primeiramente, a obra foi dedicada ao imperador Pedro II, lida e patrocinada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, local de divulgação da literatura, ciência e política na época. O local era parte de um grande projeto que implicava, além do fortalecimento da monarquia e do Estado, a própria unificação nacional, que seria também cultural. No entanto, a aceitação da oferta ao imperador e a posterior publicação custeada por ele não significava que a obra obteria sucesso. O monarca incentivava, mas a obra deveria caminhar por si só. E A Nebulosa seguiu seu caminho como um poema de rara beleza. O fato de não possuir um caráter nacional – ao menos não da maneira como se compreendia o nacional naquele momento – não afetou a sua boa recepção. Apesar da nacionalidade na literatura brasileira provar a atualidade do poema e a sua inserção nos modelos do que se esperava ser uma poesia brasileira naquele momento, havia também um outro grupo de pensamento na época que acreditava que a poesia poderia ser nacional, mesmo quando abusava do subjetivismo lírico, quando se tratava de uma poesia reflexiva, que analisava os pensamentos e sentimentos, tal qual o que se encontrava em A Nebulosa. Antônio Candido afirmou que, ao lado do nacionalismo, havia no romantismo a miragem da Europa, o norte brumoso. A Nebulosa se insere nessa vertente de temática mais universal. A atmosfera nebulosa, soturna, a descrição da natureza orgânica, o dilaceramento interior das personagens dementes de paixão, brancas e pálidas como “neve” e “cristal” transportados para a imaginação tropical, nos sugere um poema escrito na contramão do projeto nacionalista, mas ainda assim ovacionado pela crítica e pelos leitores em geral.
A Nebulosa é uma obra que praticamente ficou desaparecida por mais de um século. Quais são as hipóteses para que isso tenha acontecido?
AMGC: Depois de duas edições no século XIX A Nebulosa praticamente desapareceu das prateleiras de livrarias e bibliotecas. Em 2006 foram localizados cinco exemplares da primeira edição e nove da segunda. Dois fatores podem ter contribuído para isso. Um deles se deve ao esparsamento das críticas em periódicos e histórias literárias. No século XX contamos apenas quinze, menos da metade do que foi produzido no XIX. O último comentário de fôlego data de 1863, por Ferdinand Wolf. Depois disso um longo silêncio até 1882, ano da morte do autor. No século XX, apenas algumas pequenas notas, de tempos em tempos, excetuando Antônio Candido, em 1957, que se debruça na análise do poema na sua Formação da Literatura Brasileira. Os livros didáticos ou obras que interessam ao público universitário nem sequer citam o poema de Macedo, tornando-o desconhecido tanto para estudantes como para estudiosos da obra de Macedo ou do romantismo. Outro fator para o desaparecimento de A Nebulosa pode estar relacionado com o caminho escolhido pelo autor. No seu necrológio, em 1882, um crítico, ao fazer o inventário do autor, assim diz: [A Nebulosa] pode considerar-se como a última corda de sua lira, como o último trabalho que ele fez dominado unicamente por preocupações literárias” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 de abril de 1882). Macedo foi o representante oficial da literatura romântica e sua popularidade se deve à sua primeira fase, mais romântica. O romance, nessa época, passou a ter um público cada vez mais crescente e encontra o seu lugar na literatura brasileira. O Macedinho, como era popularmente conhecido, para satisfazer a exigência desse público, chegou a publicar entre 1867 e 1870 nada menos que dez títulos! Assim, é possível que com essa fecundidade numérica e um público ávido por romances ou até reedições – Vicentina estava na terceira edição em 1870 – as editoras se empenhassem na circulação dessas obras em detrimento de novas edições de A Nebulosa.
Joaquim Manuel de Macedo é popularmente conhecido por A Moreninha. Para além da questão do gênero literário, que surpresas a leitura de A Nebulosa reserva ao leitor?
AMGC: A Nebulosa pode surpreender não só pelo tema e versos fáceis, mas pela expressão natural dos sentimentos. O poema narra a história de um amor impossível. Essa impossibilidade seria tema recorrente do ultrarromantismo, no entanto, o amor desprezado e o efeito da paixão são desenvolvidos como sentimentos contrastantes no homem e na alma feminina. A mulher é representada como o arquétipo da mulher fatal, que sem misericórdia recusa o amor do Trovador, demonstrando vontade e poder de decisão, ao contrário do papel remissivo comumente dado a ela na literatura europeia. O leitor encontrará no poema toda a matéria romântica, como o gosto pelo passado, o medievalismo, o mistério e o horror, os elementos fantásticos, folclóricos e populares, as elegias de caráter rústico, o pitoresco das bruxarias e malefícios, as fadas e feitiçarias, a poesia tumular, o amor e a morte, a fusão de gêneros e a ingenuidade de sentimentos exacerbados. O que pode surpreender na leitura de A Nebulosa é a percepção de que todas essas características são próprias da poesia ossiânica e medieval e se encontram entranhadas no poema de Macedo.
Em sua opinião, esta nova edição de A Nebulosa pode ajudar o leitor (e os críticos) do século XXI a (re)descobrir a obra? Ela ainda é uma leitura impactante, que oferece matéria prima para novas críticas e estudos?
AMGC: A terceira edição de A Nebulosa tanto pode ajudar o leitor quanto os críticos de hoje a redescobrirem a obra há muito esquecida no ossuário do romantismo. O poema é importante enquanto fato estético e como fato da historiografia literária. Sua leitura permite ao leitor entrar num mundo romântico e conhecer os conceitos fundamentais do romantismo: a beleza da morte e seu caráter de fatalidade, a comunicabilidade entre os elementos e os seres, a vida e a morte, a dor e a paixão, um canto fúnebre que sugere uma existência mais bela e essencial, resultando num dos mais belos do romantismo brasileiro. Com o restabelecimento da obra, a crítica literária terá instrumentos que possibilitarão o entendimento total do poema e a constatação de sua importância para a história literária. A publicação de A Nebulosa poderá contribuir para que a crítica e leitores atuais possam apreciar essa obra de grande interesse para o conhecimento mais amplo do romantismo no Brasil, bem como da hoje obscura face poética de Joaquim Manuel de Macedo.
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