Por Renato Tardivo
A relação de Freud com as artes foi marcada por ambiguidades. Em uma vertente, ele se valeu das artes e do trabalho do artista a fim de validar a teoria que estava criando. Em outra, Freud parece privilegiar a correspondência entre as artes e a psicanálise, pois ambas se prestam a explorar os mistérios da alma humana.
Em um excerto curto, anexo à carta a Fliess (1897), Freud compara as fantasias histéricas aos mecanismos da criação poética: “Shakespeare tem razão ao igualar criação poética e delírio”. Essa acepção, talvez majoritária ao longo de sua obra, é a que está contida no ensaio “Escritores criativos e devaneio” (1908): a arte enquanto sublimação de desejos inconscientes reprimidos. Em vez de transformar em sintomas, os artistas dariam forma a esses desejos, isto é, os sublimariam, de modo a serem aceitos pela cultura.
Um dos principais textos nessa direção é o longo ensaio “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci” (1910). Freud procura resolver os enigmas que a obra de arte coloca por meio da aplicação da teoria que ele construía, aplicando a psicanálise à obra de arte e ao trabalho do artista, ao testar e buscar validar os conceitos.
A propósito, o fenomenólogo francês Maurice Merleau-Ponty, no ensaio “A dúvida de Cézanne” (1945), faz ressalvas a esse uso de Freud, muitas vezes arbitrário, mas também reconhece a sua importância.De acordo com o filósofo, “o sentido de [uma] obra não pode ser determinado por sua vida”. Ao contrário, é a “obra por fazer [que] exigia essa vida”. Assim, “a psicanálise não é feita para nos dar, como as ciências da natureza, relações necessárias de causa e efeito, mas para nos indicar relações de motivação que, por princípio, são simplesmente possíveis”.
Há ensaios em que Freud discute as artes ou o trabalho do artista em que isso fica muito claro. Nesses casos, ocorre uma inversão da acepção majoritária de Freud sobre as artes. Em vez da analogia entre sintoma e trabalho do artista, a analogia se coloca entre o trabalho criativo do artista e as interpretações do psicanalista.
Célebre nesse sentido é a carta de 1922 que Freud endereçou ao escritor Arthur Schnitzler. Nela, o psicanalista confessa encontrar no escritor o seu duplo. Curiosamente, a carta não foi veio a público enquanto Freud esteve vivo, pois de fato revela o seu temor a respeito da aproximação entre trabalho do artista e trabalho do psicanalista. Homem da ciência que foi, sabemos que Freud rompe com ela, mas procura a todo tempo reconciliar-se.
Não deixa de ser fortuito que o único prêmio que recebeu em vida foi o Goethe. Sabemos que em muitos de seus escritos, Freud valeu-se de passagens do escritor alemão. No discurso lido por Anna Freud na ocasião do prêmio (1930), Freud afirma que ter colocado o escritor na “condição de objeto da pesquisa analítica” não significava um rebaixamento. Uma vez mais, são a obra e o trabalho do artista objetos da teoria psicanalítica, que é capaz de esclarecer “o mistério do talento extraordinário que o torna artista”. Freud recebe o prêmio Goethe enquanto homem da ciência…
“Transitoriedade” (1916) é um artigo curto, mas muito importante. Nele encontramos o Freud escritor em sua melhor forma. Com ares proustianos, o pai da psicanálise discorre poeticamente sobre a passagem do tempo. No ensaio, é abordada a temporalidade freudiana do après-coup, segundo a qual as inscrições do vivido são ressignificadas “só depois” de sua ocorrência factual. Eis uma forma interessante de pensar o atravessamento de Freud pelas artes, também ele empreendendo uma série de ressignifcações ao lugar da arte e do trabalho do artista. Ora, ao o procurar desvendar os mistérios da alma humana, Freud nos ensinou que ela é um mistério interminável.
Para ler mais sobre arte e psicanálise, acesse: http://www.atelie.com.br/livro/arte-dor-inquietudes-entre-estetica-psicanalise/
Psicanalista e escritor. Doutor em Psicologia Social da Arte (USP). Autor, entre outros, do ensaio Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp).