Entrevistas

A voz de Gilberto Gil

Por: Renata de Albuquerque

 

De fã a pesquisador. Essa é a trajetória que o jornalista e pesquisador Pedro Henrique Varoni de Carvalho percorreu para tentar apreender e explicar a trajetória de Gilberto Gil dos palcos ao Ministério da Cultura – posto que assumiu em janeiro de 2003, durante o primeiro mandato do  presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

voz que cantaVaroni é autor do livro A Voz que Canta na Voz que Fala: A Trajetória Poética e Política de Gilberto Gil, que acaba de ser lançado agora pela Ateliê Editorial. Na obra, ele trafega pela análise do discurso e aponta como Gilberto Gil trouxe o seu discurso poético-tropicalista ao ministério, sugerindo e promovendo mudanças até então inéditas no que toca ao tratamento dado à cultura brasileira pelo Estado.

O autor, que é Mestre e Doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos, professor do Curso de Jornalismo da Universidade Tiradentes (Aracaju/SE) e Diretor de Jornalismo da TV Sergipe (afiliada da Rede Globo em Aracaju), fala sobre sua obra ao Blog da Ateliê:

Como teve a ideia de escrever sobre Gilberto Gil? Quando a admiração de fã tornou-se curiosidade de pesquisador?

Pedro Henrique Varoni de Carvalho: As canções de Gil e Caetano foram uma descoberta da infância. Um tio tinha uma boa coleção de discos e fui seduzido pela sonoridade das canções. Poucas coisas são tão fortes como a gravação de “Aquele Abraço” ou o violão de “Expresso 2222”, pra ficar em alguns exemplos. Essas e outras canções de Gil sempre me impressionaram.   Ele é um artista que conjuga uma expressão poética densa, uma musicalidade rica e um jeito de interpretar as canções, bastante original. A curiosidade sobre a música orientou desde então meu trabalho de jornalista e pesquisador. Então as questões relacionadas à música brasileira estão, desde sempre, no meu campo de interesse.

Pedro-Varoni-2015

Pedro Varoni

Durante o Mestrado no Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos propus a noção conceito que seria trabalhada no Doutorado, a de arquivo de brasilidade baseada no pensamento de Foucault. O arquivo é tanto depositário da memória quanto o que garante as condições de enunciabilidade. Trata-se da busca de uma metodologia baseada na Análise do Discurso a partir das contribuições de Michel Pêcheux e Foucault para descrever e interpretar a história brasileira, tomando por referência a relação entre acontecimentos e memória.  Essas inquietações levaram-me ao tropicalismo como um momento histórico que instaurou outra ordem do discurso no meio cultural brasileiro.  As linhas de pesquisa do programa de Pós Graduação em Linguística da UFSCar tinham, naquele período, um foco na análise dos discursos políticos.   A imagem de Gilberto Gil tocando no plenário da ONU motivou a busca de respostas relacionadas às relações de saber e poder em torno da canção. O Ministro artista evocava outra imagem: a do jovem músico se apresentando no Festival da Record em 1967. Nessa fase da pesquisa estava sendo lançado o documentário “Uma Noite em “1967” que muito contribuiu para as reflexões do meu trabalho. Assim, Gilberto Gil aparece como uma síntese de alguns acontecimentos daquele momento: o encontro entre o artista tropicalista e o líder sindical tornado Presidente da República, as transferências simbólicas da política para a canção e da canção para a politica. Tudo isso a partir do referencial teórico metodológico da Análise do Discurso.

 

Como se deu o processo de pesquisa: como foi essa trajetória, quais as dificuldades encontradas no caminho?

PHVC: Era preciso separar, desde o início, o indivíduo do sujeito do discurso. Pela Análise do Discurso, o sujeito é interpelado pela linguagem, história e inconsciente.   Não há sujeito pleno como origem e fim do discurso, como não há assujeitamento pleno.  Assim, a dificuldade inicial era encontrar este sujeito do discurso por detrás dos aspectos biográficos.  A noção de subjetividade lançada por Foucault e trabalhada por outros autores foi a que possibilitou esse encontro com o sujeito do discurso Gilberto Gil. O pensamento de Suely Rolnik foi de grande valia para se pensar a subjetividade hippie-tropicalista-antropofágica, fruto do exílio e das experimentações existenciais dos anos 1960 e 1970 que se davam a ver na dimensão do corpo, das micropolíticas. Ao mesmo tempo em que Gil se insere nessa ordem do discurso para criar suas canções a subverte, contribuindo para a emergência de uma contracultura tropical litorânea.

Refazenda-capa

Capa do álbum Refazenda (1975)

O tropicalismo foi o acontecimento discursivo que possibilitou uma ampliação das bandeiras micropolíticas no Brasil. A trilogia de Gil – os álbuns Refazenda, Refavela e Realce, antecipa tendências comportamentais e políticas. A questão da valorização de estilo de vida sustentável, os direitos de cidadania, contra o racismo, o machismo e por fim a legitimidade do entretenimento e da poesia popular são temáticas atuais e que já estavam lá nesses álbuns conceituais de Gil.  Essa complexidade demandou um trabalho arqueológico e genealógico tanto sobre a eclosão do tropicalismo quanto seus desdobramentos. Ao mesmo tempo como o assunto já foi tema de muitas e importantes pesquisas, era preciso tentar ir além. Buscar responder qual o sentido do tropicalismo hoje, tentar analisá-lo com olhos contemporâneos para refletir sobre o seu lugar no arquivo de brasilidade.

O que mais o surpreendeu durante a pesquisa?

PHVC: As hipóteses foram sendo construídas durante o trabalho. No momento do projeto interessava saber as condições da transferência de valor simbólico da canção para a política institucional, principalmente ligada à ascensão de Lula ao poder. A investigação revelou de um lado o processo histórico de constituição da canção brasileira como rede de recados do popular para o político-midiático. Desde o samba, passando pela geração dos Festivais – que inclui além de Gil, Caetano, Chico, os grandes nomes da chamada MPB – há uma relação entre a canção e o dinamismo dos acontecimentos.  Talvez o último momento em que isso se dê seja com a geração do rock dos anos 1980, período que coincide com a volta da democracia no país.  A partir daí as linhas de força da canção perdem o elo entre o passado recente e o futuro próximo, uma crise de transmissibilidade nos termos do filósofo Giorgio Agambem.  É justamente esse momento que coincide com a chegada de Lula ao poder e a escolha de Gilberto Gil como seu Ministro da Cultura.  Por isso, o trabalho se chama a voz que canta na voz que fala. Procurei, de certa forma, inverter a descoberta de Luís Tatit de que há sempre uma voz que fala na voz que canta. No caso da presença física e simbólica de Gilberto Gil como Ministro da Cultura de Lula há uma transferência desse capital da canção para a política, da voz que canta na voz que fala.

Gilberto Gil canta "Imagine" na ONU

Gilberto Gil canta “Imagine” na ONU

A grande imagem desse movimento é justamente a apresentação de Gil no plenário da ONU, num momento em que o Brasil aparecia, aos olhos do mundo, como exemplo de tolerância mestiça e Lula era saudado como “O cara” por Barack Obama. Caetano Veloso disse que Gil era o Lula do Lula. Esse enunciado pode ser interpretado a partir das dicotomias entre uma esquerda engajada que gerou o movimento sindical de onde Lula surgiu e os elementos comportamentais de uma contracultura negro-baiana de onde vem Gilberto Gil.  As questões de gênero, raça, da diversidade entram no Governo Lula também pela voz de Gilberto Gil.  Esses valores simbólicos contribuem, naquele momento, para uma nova posição do Brasil no jogo geopolítico internacional.

De que maneira o conceito de Antropofagia, que o Tropicalismo tão bem utilizou, aplica-se à atuação de Gilberto Gil como ministro de Lula? Que exemplos concretos podem se dados dessa atuação nesse contexto?

PHVC: Em Oswald de Andrade a antropofagia era um pensamento filosófico, uma intuição no contexto da busca do nacional-popular que justifica o modernismo brasileiro.  Defendemos na nossa pesquisa que com o tropicalismo esse pressuposto filosófico se torna estratégica político-midiática, foi algo que transcendeu o projeto estético das canções.  Nesse sentido, o tropicalismo é uma aplicação prática do preceito filosófico antropológico. A motivação para que Gilberto Gil se engajasse no tropicalismo, no final dos anos 1960, veio de uma imersão sua na cultura popular do interior de Pernambuco em que a vitalidade da Banda de Pífanos o fez pensar no jovem rock inglês. Essa aproximação entre universos simbólicos tidos como inconciliáveis pelos defensores de uma autêntica música brasileira procura chamar atenção, sobretudo, para as relações entre mídia e cultura popular. Se aqui chegavam os Beatles e os Rolling Stones teríamos de criar uma sonoridade brasileira moderna e cosmopolita. É o movimento que desagua, por exemplo, no mangue beat.

O ministro segue essa trilha da “guerrilha cultural nos canais do sistema”. A proposta dos pontos de cultura, em que comunidades do interior teriam direito a uma ilha de edição, uma câmara e internet de banda larga é uma atualização da antropofagia tal como foi lida pelo tropicalismo. Fazer circular a cultura popular é a única forma de revitalizá-la, de manter o vínculo com o contemporâneo. Tornar todos potencialmente produtores de conteúdo e não apenas consumidores passivos da cultura de massa. A ideia de antropofagia é, nesse sentido, como salientam muitos pensadores, uma das mais profundas e originais contribuições do modernismo brasileiro ao mundo. A relação entre fluxos homogeneizantes da sociedade globalizada e sínteses antropofágicas das culturas histórico-territoriais tornou-se uma das possibilidades para a crise de identidades nesses tempos líquidos.

Em sua opinião, como a atuação de Gilberto Gil enquanto ministro contribuiu para a criação (ou manutenção) de uma (nova?) autoimagem brasileira durante os anos Lula?

Luiz Gonzaga, o Rei do Baião

Luiz Gonzaga, o Rei do Baião

PHVC: A presença de um artista com a trajetória de Gilberto Gil contribuiu para o efeito simbólico de que a chegada de Lula ao poder significava uma correção histórica de séculos de mazelas sociais no país.  De um lado a trajetória de um pau de arara, líder sindical. De outro a de um negro, filho de uma classe média baiana que contribuiu com sua arte para a criação de uma linguagem original e moderna, que o habilitou a transitar pelas plateias do mundo. A potência do canto com mensagens pacifistas e de defesa da diversidade fizeram de Gil uma espécie de embaixador brasileiro em momentos marcantes. Na ONU além de suas canções, ele cantou músicas de John Lennon, Bob Marley e saudou Luiz Gonzaga. É um acontecimento que dialoga com a eclosão do tropicalismo e, de alguma forma, com as utopias da geração dos anos 1960, não só no Brasil, mas no mundo.

É possível fazer uma análise dialética dessa atuação do artista no Ministério? Existe uma síntese possível para o “caso Gilberto Gil”, cuja atuação política (esperada na esfera artística) transbordou os limites da arte e passou a se realizar na política partidária e na esfera do poder público?

PHVC: “O caso Gilberto Gil” é exemplar da potência poética e política vivenciada no Brasil pela geração de artistas surgida nos anos 1960. Do cinema novo ao tropicalismo, passando pela canção de protesto, pelos vários movimentos teatrais havia um desejo de transformação do real a partir de uma nova linguagem. Esse lugar da arte sofre uma cisão a partir dos anos 1980 em que de um lado há um aumento do aspecto mercadológico, do culto às celebridades, de certa frivolidade que resulta numa música para fazer dançar ou provocar emoção fácil. Visto por esse ângulo o movimento de Gil em direção a política não deixa de ser a retomada dessa utopia de uma juventude revolucionária.

O movimento de Gil em direção ao Ministério é também sintoma de uma crise nas linhas de força da canção popular. A MPB de gosto universitário dos anos 1960 não gera prosseguimento a não ser em nichos. Naquele período eclodiram as discussões sobre o fim da canção, a partir de uma provocação de Chico Buarque, na verdade indicando o deslocamento para o rap, a nova voz da periferia nos anos Lula.  Essa possibilidade de expressão periférica possibilitada pelas novas tecnologias e o movimento da sociedade não deixa de ser o sonho da geração dos anos 1960. Então quando Gil se aventura no dispositivo governamental ele legitima esse fluxo a partir de políticas como os pontos de cultura. E o faz não mais só como artista, mas como aquele que propõe as políticas públicas para a cultura. Conceitualmente, os pontos de cultura são o equivalente simbólico da bolsa-família, no sentido de dar voz à diversidade brasileira.

Outro aspecto da atuação do Ministro é esse status de embaixador cultural do país defendendo uma ideia que vem de Gilberto Freyre, passa por Darcy Ribeiro de que somos uma nação mestiça e criativa, muitas vezes promovendo um relativo apagamento da colonização violenta que nos constitui. Isso apesar das canções de Gil como “A Mão da Limpeza” e “Nos Barracos da Cidade” colocar o dedo na ferida.

Qual o legado da atuação de Gilberto Gil, nesse sentido, para o Brasil de hoje, que vê o fortalecimento do conservadorismo nas mais diversas esferas?

PHVC: O artista como sujeito do discurso se inscreve na subjetividade hippie-antropofágica de matriz africana que tem sido um elemento de resistência à onda conservadora porque preconiza o direito às liberdades do corpo, contra o racismo. Suely Rolnik fala nas subjetividades dos anos 1960 que continuam a produzir sentido na sociedade. Assim, temos o “Coronel em nós”, “o hippie em nós”, “a tradição, família e propriedade em nós”. Essas subjetividades explicam muito das radicalizações e conservadorismo que eclodem nesse momento. Elas não surgem agora, são atualizadas, vêm à luz diante de uma nova ordem do discurso ainda de difícil apreensão. É algo que o trabalho apenas sugere, mas seria um prosseguimento dele.

Rolnik também tem uma discussão bastante interessante sobre o que denomina de “Zumbi antropofágico”, que seria uma banalização da mistura fazendo com que a energia revolucionária dos anos 1960 fosse domesticada pelo capitalismo. O resultado é um excesso de relativismo gerando misturas inodoras, sem alma, quase sempre a favor apenas do mercado. Há um núcleo de identidade a partir do qual se promovem as misturas. No caso de Gil é a baianidade de Caymmi e a poética sertaneja de Luiz Gonzaga. Gil resulta do encontro do sertão com o litoral.  É preciso uma dissociação do próprio tempo, demonstra-nos Agambem, para capturar o contemporâneo, traduzir em linguagem o que o real quer dizer. Esse é o principal ensinamento da trajetória deste artista ímpar.

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