Clippings, Resenhas

Antonio Miranda resenha Clusters, de Pedro Marques

Fonte: Antonio Miranda

Resenha por Antonio Miranda

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Clusters, de Pedro MarquesSempre entendi cluster como um coletivo formado por forças convergentes em razão de alguma causalidade. Venho da Ciência da Informação e sempre acreditei que as leis que regem a informação na sociedade em geral, assim como no universo como um todo, também atuam no processo criativo e (também) na poesia. As palavras se aglomeram, vêm durante a formulação do texto (linear ou não), numa situação específica, irrepetível. Um poema acontece em tais circunstâncias. Um poeta está imerso nesta criação fractal, amalgamando um vocabulário comum para expressar-se sobre um algo que vai ser compartilhado, mesmo quando pense que não escreve para ninguém… O poeta, como o cientista, qualquer criador, é um ser plural, um porta-voz que ousa expressar-se enquanto tal. Um poema é um acontecimento histórico.

A diferença é que alguns se entendem num processo de inscrição a partir do que vivenciam, outros — e cada vez mais criadores nesta linha de produção — preferem reinterpretar, ou mesmo inventar as situações. Trata-se de uma opção. Ser naturalista ou ser um criador de situações novas. Sugerir em vez de descrever, referir-se a fatos concretos ou imaginários.

Por exemplo, Konstantinos Kavafis reinterpretou a trajetória humana em seu poema sobre a chegada dos bárbaros. Helênico, em tempos modernos, entre os fundamentalismos muçulmano e cristão em sua Alexandria, dava seu testemunho . ” [À espera real dos bárbaros]”, de Pedro Marques, também parte de uma experiência de mundo, mas se projeta em situações bem mais fluídas, menos datadas e localizadas. “Eles chegam de todos os lados“, no diz, como a dizer que todos vivemos nesta situação. “Principalmente pelo céu e pelas mercadorias/ que não temos“. Condição aberta para uma interpretação livre, irrecusável, porque o poeta sabe da universalidade da condição humana. Pedro Marques até “ilustra” a situação referindo-se a fatos históricos vagos, de uma guerra próxima de nós, em Paris, “aos beijos com aquelas moças brancas/ como nossa areia“, como que saindo do geral para uma situação coloquial, para dessacralizar o discurso. Aí segue despistando, como-que desmontando o cenário, com referencialidades desencontradas:”Mas o filme por estrear é bem outro”/ “Para as aldeias sem escolas e hospitais/ enviam cinquenta milhões em bombas“/ Em toda nossa pobreza semianimal,/ nós, os mesopotâmios, acreditamos numa cilada“.

Pensamos estar diante de uma escrita automática, aleatória, como a que pretenderam os surrealistas. Nada disso. Ou que se trata do recurso “palavra-puxa-palavra” das vanguardas pós-concretitas que modulavam seu discurso no fluxo de encadeamentos verbi-vocais mais ou menos previstos pelas possiblidades do repertório linguístico. Estamos, no entanto, diante de uma linguagem inventada pela lógica não silogística, de desdobramentos sutis, promovidos pela criação livre. O poema não se esgota em sua inscrição linear, requer releituras, certo de que os leitores completam o sentido a partir de sua percepção. Obra aberta, provocativa, dialogal sem imposição.

E o final parece desconcertante: “Multidões de serpentes e escorpiões do deserto/ guardam e em posição” e um terceto ainda mais desviante: “Qualquer trecho de pele menos protegido,/ cada jagunço pode tomar até vinte soldados” / “de dia e de noite“.

Que venham agora os hermeneutas, os críticos e façam a autópsia e revelem as entranhas. Que venham os psicanalistas, os historiadores. Melhor que venham os leitores de poesia, independentes de teorias estéticas, e façam sua própria interpretação.

Ouso fazer, ainda, dois comentários aparentemente desconexos. Lembrar que Picasso nos ensinou que ele não buscava, mas que sempre encontrava, como que nos dizendo que estava sempre aberto para o novo, o inusitado, livrando-se da armadilha de só encontrar o que estivesse buscando… A outra questão é o fecho do poema. Quase sempre o poeta finaliza seu poema como uma coroa de flores, uma conclusão irrefutável, uma lápide, o corolário de um raciocínio, um gran finale... Que é sempre do poeta, induzindo, impondo, fechando o poema. Quase sempre funciona, mas fechando a porta, a janela do poema.

Que tem isso a ver com o poema de Pedro Marques? Para o bom entendedor, uma só palavra basta.

A seguir, o poema citado, na íntegra, e outro mais, dentro dos escassos limites da tolerância dos direitos autorais…

[A espera real dos bárbaros]

Eles chegam de todos os lados

Principalmente pelo céu e pelas mercadorias

que não temos

Há algum tempo estão mudados

Depois da luta encarniçada com os alemães,

entraram em Paris – veja o que é a guerra –

aos beijos com aquelas moças brancas

como nossa areia

Mas o filme por estrear é bem outro

Para as aldeias sem escolas e hospitais

enviam cinquenta milhões em bombas

Em toda nossa pobreza semianimal,

nós, os mesopotâmios, acreditamos numa cilada

Multidões de serpentes e escorpiões do deserto

guardam em posição

Qualquer trecho de pele menos protegido,
cada jagunço pode tomar até vinte soldados
de dia ou de noite

[O atropelado]

Quando ele voou embalado pela cidade,
a moça desconhecia time
ou possíveis amores

Mas ele pululava fresco como seus vinte anos

Os recheios da bolsa e do moço acrobata
confundindo-se nas suas mãos de noiva

Ele ainda dedilhou um acorde vermelho
nos cabelos dele
antes de tomar o ônibus errado

PEDRO MARQUES é doutor em Teoria e Historia Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e coeditor de várias revistas de poesia: Salamandra (2001), Camaleoa (2001) e Lagartixa (2003). Ornizou antologias e mantém a página www.poesiaamao.com.br

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