Welington Andrade | Tribuna do Norte – Natal | Seção: Opinião | Novembro de 2014
O Alienista é uma obra-prima, construída na fase de maturidade da ficção de Machado de Assis. Precisamente: é a peça de abertura do livro Papéis Avulsos, publicado em 1882, pouco depois de surgirem para a literatura nacional as surpreendentes e monumentais Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881-82). Sobre a natureza de obra-prima, não conheço divergências. Elas existem, contudo, quando se pretende interpretar a fabulação e seus personagens. Uma dessas possíveis interpretações se concentra no foco demonstrativo de que o O Alienista é uma paródia e uma alegoria dos discursos sobre fatos da história de nosso país contemporâneos do escritor (mas paródia e alegoria, atente-se bem, dos discursos historiográficos e não dos fatos especificamente). E também uma aguda reflexão sobre os (questionáveis) nexos entre racionalidade e poder, sob a ótica da própria narrativa histórica.
À primeira vista, o nobre e médico Simão Bacamarte – “um dos maiores médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas” – pretende se dedicar ao estudo da loucura. Na verdade o médico “investiga a natureza dos costumes”, pois “a sátira da novela não incide sobre a tirania da ciência, mas sobre a ilusão da vitória da razão no jogo do poder”, como revela Ivan Teixeira no ensaio “Irônica invenção do mundo – uma leitura de ‘O Alienista’” (em Machado de Assis – ensaios da crítica contemporânea, Unesp, 2008) e também na abordagem inovadora e profunda da ficção machadiana em O Altar & o Trono (Ateliê Editorial, 2010). O médico, a partir da construção da Casa Verde, a casa de Orates, um sanatório onde deveriam ser internados os loucos da vila de Itaguaí, passou a representar o poder – acima do legislativo (a Câmara de Vereadores), do clero (o padre Lopes) e do povo, que depois se sublevaria liderado pelo barbeiro Porfírio, durante a revolta dos Canjicas. Simão Bacamarte era um sábio com muita sagacidade: grande arabista, “achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos”, uma vez que “Alá lhes tira o juízo para que não pequem”. Gravou esse pensamento no frontispício da Casa Verde mas o atribuiu ao papa Benedito VIII, para evitar problemas com a igreja.
Primeiro, foram recolhidos os que estavam privados da “razão”: “A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia.” O dr. Simão supunha que a loucura era “uma ilha perdida no oceano da razão”. Mas começou “a suspeitar que (era) um continente”. Instalou-se pouco a pouco o terror. Sobretudo porque, depois, a loucura passou a ser vista como “desrespeito aos princípios éticos consensuais” (honestidade, lealdade, coerência etc.). A Casa Verde encheu-se de loucos. Nessa leva, numa prova de isenção, foi internada a mulher do médico, D. Evarista, jovem viúva, não muito bonita, mas com olhos “lavados de uma luz úmida”. A seguir, foram considerados mentecaptos exatamente “os que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais”. O movimento dos Canjicas, sangrento e sem objetivo, parodia a narrativa historiográfica das revoltas do Período Regencial (Cabanagem, Sabinada, Balaiada, Farroupilha, Praieira). O poder do médico não sucumbe aos Canjicas. É autodestruído pela racionalidade, que se mostra incompatível com o poder.
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