O filme Laranja Mecânica é um dos mais influentes do currículo do diretor Stanley Kubrick. Adaptado da obra homônima, de Anthony Burgess, o filme de 1971 traz Malcolm McDowell, com 28 anos, como protagonista em uma atuação brilhante. Ele interpreta Alex, personagem delinquente que causa repulsa por escandalizar a Inglaterra futurista e estranhamento por falar nadsat – dialeto criado por Burgess baseado no russo, inglês e cockney. O nome original, em inglês, A Clockwork Orange, deriva da expressão cockney “as queer as a clockwork Orange”. A palavra queer, usada para designar homossexuais, é também sinônimo de estranho.
Anthony Burgess estreou como escritor aos 39 anos e tem, entre suas obras, ficção, não ficção, peças de teatro, biografias e uma introdução à linguagem de James Joyce. Laranja Mecânica, seu décimo oitavo livro, foi publicado na Inglaterra em 1962, época em que o autor esteve inclinado a escrever mais do que o habitual em razão de se preocupar com o bem estar da esposa após sua morte. Ele recebera, em 1960, a notícia de que havia pouco tempo de vida em razão de um tumor cerebral. O diagnóstico era de somente um ano restante. Neste ano, o autor escreve 5 livros e meio. O “meio livro” era Laranja Mecânica. Fez-se erronia a previsão, Burgess termina a obra e vive até 1993.
Tanto livro quanto filme são ambientados em uma Inglaterra futura, onde os níveis de violência alcançam o intolerável, sendo o governo igualmente desumano em suas medidas de repressão. A elaboração do vocabulário nadsat, falado por Alex e seus amigos, é parte do caráter científico-ficcional da obra. Algumas edições vêm acompanhadas de glossário, algo que o autor não aprovava. Segundo Burgess, faz-se desnecessário seu uso para a compreensão da obra. O objetivo era causar estranhamento. De fato, as incógnitas literárias se transformam em um recurso interessante que acentua a violência já existente. Provocam a mesma sensação que cenas de “violência velada” em filmes. Vem-me à mente um exemplo: em Cães de Aluguel, dirigido por Quentin Tarantino, há a cena em que ocorre o famoso corte de orelha. É mostrado ao espectador o início do movimento, que dá a ele a dica do que irá se passar, criando um ambiente de tensão. A câmera então se distancia do desafortunado e do torturador e o espectador fica às cegas – com a câmera focada na parede – imaginando o que se passa. Por fim, a sonoplastia se encarrega de provocar em nós reações que só o cinema pode despertar. O grande elemento que torna essa cena clássica é essa “violência escondida”, que deixa metade do trabalho à imaginação do espectador e, consequentemente, ao seu repertório pessoal, que aumenta o seu grau de envolvimento com a obra.
Paradoxalmente, esse distanciamento da violência é o que a torna mais real. É o que difere um elegante filme violento de um simples filme de ação com sangue. Na literatura a imagem não é trabalhada da mesma forma; está não só suscetível à imaginação do leitor, como depende dela. E é exatamente esse recurso que Burgess intensifica com o uso dos neologismos.
No filme de Kubrick, assim como na cena de Tarantino usada como exemplo, a música é importante intensificador da estética da violência. Cena clássica aquela em que Alex agride um senhor ao mesmo tempo em que canta Singing in the Rain. As belíssimas músicas de Ludwig Van Beethoven possuem um papel de peso junto à mente ultraviolenta de Alex. Essa característica musical do personagem é um dos aspectos mais bem trabalhados na tradução do livro ao filme. Neste, é impressionante como a violência parece ser algo comum e acessível. A facilidade com que os delinquentes em questão praticam atos violentos, enquanto os espectadores – esperamos – se sentem apreensivos ao ver as cenas, é o elemento chave durante o filme. A discussão aqui, trazida do livro, é o ponto máximo em que a violência pode chegar.
O filme foi fortemente criticado pelo caráter de extrema violência e, a pedido do diretor, irritado com as críticas, foi retirado de veiculação na Inglaterra. Ainda foi proibido em diversos países e, a respeito disso, Burgess declarou “mais vale optar pela violência do que não optar por nada”.
A adaptação de Kubrick se baseia na edição americana do livro Laranja Mecânica, que contém o glossário – a contragosto do autor – e tem cortado o último capítulo. O motivo alegado foram “razões conceituais”; uma vez que o capítulo em questão é mais otimista em relação ao restante da obra. Nas edições inglesas e nas traduções para outros idiomas – inclusive nas brasileiras – o capítulo final é mantido. Essa adaptação ao filme não prejudicou o trabalho de transposição da obra, mas deixou-a mais interessante. O fim dúbio da versão cinematográfica imortaliza o olhar penetrante de Malcolm McDowell e questiona o tratamento que Alex recebe do governo. Seus métodos, sua eficácia, seu propósito. É possível recuperar mentes ultraviolentas em uma sociedade em que impera a ambição, o medo e a repressão?
Belo artigo, Laura. Praticamente todos os filmes de Stanley Kubrick são baseados em obras de literatura, como o Lolita, de Vladmir Nabokov e O Iluminado, de Stephen King. Sobre Laranja Mecânica, soube que Anthony Burgess odiou tanto a versão cinematográfica que, numa montagem teatral que realizou em Londres, colocou um sósia de Kubrick sendo espancado até a morte pelos drugues de Alex. As relações entre cinema e literatura nem sempre foram muito amigáveis. Nabokov gostou da adpatação de Lolita para o cinema, mas se surpreendeu muito ao ver o capítulo final do livro abrindo o filme.
Olá Marcelo. Fico feliz que tenha gostado do artigo. Interessante o ponto que você levantou, as reações dos autores ao verem suas obras transferidas à telona. Como você mencionou, Lolita e O Iluminado são também adaptações de Kubrick, e pretendo escrever sobre essas obras entre as próximas colunas. Do diretor, há ainda Dr. Fantástico e De Olhos bem Fechados, também baseados em livros. Não deixe de acompanhar, hein!
Beijos.
Eu, particularmente, não achei o final optado por Kubrick “dúbio”. Para mim ele estava sendo bem claro, discordando do final original do livro, que mais do que otimista era MORALISTA, colocando a questão da violência do narrador como uma coisa de “adolescente”, enquanto Kubrick deu seu recado provando que Alex estava “curado” ao recuperar os seus impulsos sexuais e homicidas. Dúbios são os nossos sentimentos em relação à personagem principal: sim, temos que defender a liberdade individual, mas e quando isso implica em aceitar a violência gratuita? E sobre a música “Singing in the rain”, eu vi uma entrevista de Malcom McDowell na qual ele diz que essa música foi uma improvisação, porque era a única que ele sabia INTEIRA. Rsss…coisa de ator.
Olá Larissa, também tomei conhecimento dessa história que envolve Malcom McDowell e a música Singing in the Rain. Quanto seu comentário a respeito do final “dúbio”, achei bastante interessante sua visão. Realmente, o livro dá a impressão de que a violência de Alex é coisa de adolescente. Obrigada por acompanhar. Beijos.
Oi Laura, muito legal o artigo. Esse filme é um dos raríssimos casos em que gostei mais do filme que do livro.
Mas tem um fato que marcou muito o filme pra mim. Assisti logo que ele foi lançado no Brasil, eu tinha entre 15 e 18 anos e era um cinéfilo fanático, junto com meu grande amigo Roberto Moreira que tornou-se depois diretor de cinema. Ele sabia tudo sobre Kubrick (coisas como a lente especial para filmar à luz de velas em um filme ou proibir a atriz de tomar sol durante meses para ficar com a pele completamente branca em outro, e assim por diante). E eis que na terrível cena do estupro aparecem as famigeradas bolinhas. A censura tinha de intervir no filme, como poderiam aceitar pessoas nus aparecendo na tela (mas aceitavam e promoviam tortura e assassinatos na vida real, vá entender), e inventaram de colocar bolinhas pretas cobrindo as partes que consideravam de mau gosto (gosto de pensar que a pornografia está apenas na cabeça de quem a vê como tal). Acontece que a tecnologia da época não era lá essas coisas e na maior parte do tempo as bolinhas não cobriam nada, ficavam só correndo atrás dos atores, com o resultado de que essa cena horrível virou comédia, o cinema todo gargalhava, eu incluso, enquanto o Roberto bradava furioso “mas essa é uma cena terrível!”. Eu concordava, mas também entendia quem ria. E vislumbrava o que hoje vejo com clareza: a imbecilidade total da censura.
Olá Sylvio! Adorei ler seu comentário. Compartilho sua opinião sobre a censura, e a sua experiência ao ver Laranja Mecânica no cinema é muito interessante! Já li algumas vezes que Kubrick era bastante exigente, e cada filme seu contém boas curiosidades. Em O Iluminado, algumas cenas tiveram que ser filmadas em torno de 50 vezes! Mas confesso que ainda desconheço a maioria de suas excentricidades. Obrigada pelo comentário e continue acompanhando, se puder.
Beijos.