Em seu novo livro, Atando as Pontas da Vida, o professor de Teoria Literária da FFLCH/USP Ariovaldo José Vidal reúne ensaios sobre prosa de ficção: além da prosa brasileira pós-1930, há textos sobre Kafka e dois ensaios memorialísticos. A seguir, ele fala sobre o volume para o Blog da Ateliê:
O título do livro remete diretamente à famosa citação de Bento Santiago em Dom Casmurro: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência” (cap II). Entretanto, o texto inicial de seu livro é dedicado a Graciliano Ramos e a Angústia. O senhor cita, logo no início de seu texto, as “imagens obsessivas” de Graciliano e o “vasculhar” do passado e do presente. O senhor vê algum tipo de ligação entre as duas obras ou entre os dois escritores neste aspecto específico da memória e da ligação da juventude e da velhice?
Ariovaldo José Vidal: Há dois aspectos na questão: o primeiro, uma possível aproximação entre Graciliano e Machado. A crítica já falou sobre isso, aproximando não Angústia (que eu saiba), mas São Bernardo de Dom Casmurro, especialmente em função do conflito central e da condição de classe implicada nos romances (há desfaçatez de classe na figura de Paulo Honório em mais de um momento no romance). Mas já nesse caso, há também muita diferença entre os dois romances; e no caso de Angústia, as diferenças são ainda mais fundas. Penso que esses aspectos de memória são um tanto gerais para sustentar uma comparação.
O outro aspecto da questão é que uma citação – quando feita na forma de título, epígrafe, ou mesmo de maneira sentenciosa para explicitar algum sentido na obra de chegada – perde o vínculo inicial com o contexto de partida, ganhando outra significação no contexto de chegada. Essa frase, na verdade, descreve literalmente o percurso doentio de Luís da Silva no romance, ainda que sua história esteja longe da personagem machadiana; descreve também o movimento de leitura que eu empreendi no ensaio ao ler a história da personagem; e mais do que isso, descreve um movimento que contorna o livro todo.
A “intenção da heterogeneidade” está explícita já na abertura da obra e se consolida ao longo dela. Entretanto, muitos autores buscam exatamente o oposto quando compilam seus textos. O que o fez buscar essa heterogeneidade?
AJV: A fidelidade aos fatos, à minha história; e vai nisso certamente algo de precário, que (para escândalo do leitor) não me incomoda. Você tem razão: a atitude crítica se pauta por uma coerência que, às vezes, pode ganhar uns ares de neurose. E isso se explica porque essa atitude está posta numa instituição que tem uma intervenção social, uma intervenção política, dentro da qual a atividade intelectual se pauta por um compromisso também moral e político. Mas como nosso trabalho também mexe com a subjetividade e suas contradições, é sempre bom não esquecer a lição de Guimarães Rosa, de que quem castiga nem é Deus: é os avessos.
Feito esse comentário, que tem algo de psicologia de bolso, é preciso perceber que um conjunto heterogêneo é dotado também de unidade e coerência. Ao contrário, a unidade da diversidade é sempre muito mais rica. Há uma ordem na simetria das linhas soltas (e eu estou citando João Cabral).
Ao realizar a seleção dos textos, o senhor percebeu uma mudança na sua própria forma de pensar a literatura ao longo do tempo? O que destaca, neste sentido?
AJV:Posso falar de dois aspectos: o estilo e a perspectiva. No caso da perspectiva, eu me voltava muito para uma leitura um tanto universalizante da obra, ou mesmo desvinculada das relações de classe; acho que com o tempo essa mudança foi se fazendo mais visível nos meus textos e nas minhas aulas. Mas note que isso não abre mão de tratar a personagem da maneira mais complexa possível, sem dogmatismo, uma complexidade que no meu caso não ancora na psicanálise ou outra disciplina (não por recusa da matéria, mas pelo pouco pendor a uma conceituação sistemática); busca apoiar-se na complexidade formal com que o texto trabalha a constituição da personagem, imersa em todas as formas da vida social.
Quanto ao estilo (supondo que eu tenha algum), a minha linguagem tinha um ar muito “serioso” que aparece, por exemplo, no ensaio sobre o Graciliano. Depois, fui depurando a linguagem e a sintaxe, e quero isso cada vez mais – um certo equilíbrio leve, na escrita da arquitetura, para falar mais uma vez com João Cabral e seu dileto arquiteto. Só espero que essa leveza seja, de fato, dotada de equilíbrio e, portanto, de consistência.
Um capítulo específico da obra revisita Antonio Candido (“Um Ensaio na Sala de Aula”), mas as lições deste mestre permeiam muitos dos textos reunidos no livro. Qual a importância de Candido na sua formação intelectual e, em sua opinião, para toda a crítica literária brasileira?
AJV: Ufa! A segunda parte de sua pergunta eu me recuso a responder, antes de tudo porque não sou a pessoa mais autorizada a fazê-lo. Mas a tradição crítica que ele criou é prova que responde à pergunta. E justamente vários desses críticos e professores deram um testemunho de sua importância. Quero me deter na primeira parte e, mesmo assim, num aspecto específico.
Quando fazia o curso de Letras aqui na USP, fui aluno do Davi Arrigucci Jr. No primeiro semestre ele trabalhou com os contos do Mário de Andrade e, no segundo, com a poesia do Manuel Bandeira. Foi no curso do Davi que eu conheci o ensaio de Candido, juntamente com o modo de leitura do Davi. Inclusive, o Davi trouxe para a classe um ensaio mimeografado dele sobre o Bandeira, que mais tarde estaria no livro Na sala de aula. As aulas do Davi foram reveladoras para mim, assim como alguns ensaios do Antonio Candido, quando eu os conheci melhor, digamos de maneira mais interessada, já como aluno de pós e professor. Reveladores sobretudo quanto ao método de leitura, que vou tentar esboçar livremente a seguir (volto a dizer, livremente), inspirado inicialmente pelo ensaio “Crítica e sociologia”, que está no livro Literatura e sociedade. Mas digo desde já que a questão perpassa toda a sua obra.
Para começar é preciso reconhecer que a realidade é dotada de sentido. É um caos, mas um caos dotado de sentido; e no nosso caso, um caos que é sinônimo de horror banalizado. Quando um índio é queimado vivo por delinquentes da classe alta de Brasília; quando um menino negro de oito anos no Rio, brincando dentro de casa, é metralhado pela polícia (e um superior justifica a ação); quando uma mulher é brutalmente assassinada pelo marido diante dos filhos; ou uma travesti, igualmente, no meio da rua, essas cenas horrendas são dotadas de um sentido que vai além delas. Não se trata, em cada caso, de um fato isolado; logo, elas devem ser interpretadas.
As áreas todas do conhecimento (especialmente das Humanidades) interpretam essas cenas como partes de uma estrutura maior da qual elas são fragmentos significativos. A cena do índio Galdino sendo queimado vivo em Brasília é, literalmente, a História do Brasil. É uma metonímia dessa História. Se um pintor representasse essa cena (não sei se houve algum caso) ele poderia muito bem colocar no quadro (de maneira denunciativa) o título “História do Brasil”, e ninguém acharia propriamente estranho.
Entre essas interpretações, está a da literatura com sua condição inalienável de representação da realidade, com sua condição da velha e boa imitação. Ao representar a realidade e tirar da cena toda a complexidade que ela possa ter, o escritor trabalha com a materialidade dos mínimos detalhes, todos eles significativos. Eu não vou atrás agora dos fatos do assassinato de Galdino, mas por alto veja só: o personagem que “dormia” no banco da praça era um índio; dormia lá porque não tinha onde dormir; os assassinos eram jovens da classe alta; o espaço era Brasília (centro do poder), onde trabalham os capangas engravatados da elite econômica (e as capangas), sem contar o teatro asqueroso que foi o julgamento passado na tevê (ou um deles).
Ao fazer a representação desse fato, o escritor elimina tudo o que não se refira diretamente a ele, criando o que Candido vai chamar em outro passo de “redução estrutural”; ou seja, a estrutura da vida social é “reduzida” a uma cena que lhe é significativa, em que todos os detalhes são significativos. Ao fazer essa redução, o escritor transforma o que é descontínuo num contínuo; por isso, a redução não é diminuição: é antes concentração, o que torna a obra dotada de ambiguidade, o combustível de todas as artes. Não há obra artística que não seja dotada de ambiguidade, porque nela há uma concentração de sentido, em que o mínimo detalhe, como disse, se torna significativo. E aqui entra o leitor.
Ao leitor está reservada uma espécie de “redução estrutural” de segundo grau. Ou seja, se o escritor deu a conhecer a realidade, agora é o crítico com seu ensaio que dará a conhecer a obra, com a redução estrutural que ele cria em seu texto. A “redução” que está na obra dá a conhecer a realidade; a “redução” feita pelo ensaio dá a conhecer a obra. O escritor trabalha livremente com a realidade, mexendo no que ele quiser; como diz Candido, o escritor trai a realidade para ser fiel a ela. O crítico, a mesma coisa: como a estrutura da obra já forma um contínuo, ele pode muito bem seguir a ordem criada pelo escritor, ou seja, analisar a obra começando pelo primeiro capítulo; mas nada impede também que ele comece a leitura pelo penúltimo capítulo; ele trai o escritor para ser fiel à obra.
Por isso, Candido chamará a essa crítica de “crítica integrativa”, em que todos os elementos funcionam para criar o sentido, e em que a matéria externa penetra a obra e forma sua estrutura, já como matéria interna. Por isso, ao analisar a obra por dentro é como se o leitor penetrasse nas entranhas da realidade, que foram enformadas pela obra. É nesse sentido que eu entendo a formulação de Adorno no conhecido ensaio sobre a poesia lírica (e que serve ainda mais para a narrativa), ao dizer que a referência ao dado social não deve levar para fora da obra e, sim, para dentro dela (o que supõe, é claro, o conhecimento do que está fora).
Também por isso, Candido chamará a essa crítica de “crítica estrutural”, em que todos os elementos, em níveis diversos, participam da configuração da estrutura da obra. De maneira tautológica, eu diria que essa estrutura é formada pelos elementos estruturais; no caso da narrativa (por mais fragmentada que seja), supõe a ordenação dos capítulos ou partes, a ação dramática externa ou interna (ou sua ausência), as personagens, tempo e espaço, bem como a figura do narrador, com todas as determinações de focalização e linguagem. Ainda que procure formular o conceito, Candido prefere antes analisar as obras e deixar que a análise prática dessas obras mostre os pressupostos de sua crítica (até porque quem teoriza muito, tende a analisar pouco). De mais a mais, vale lembrar a lição de Erich Auerbach: depois de escrever uma das maiores obras do ensaísmo no século XX, tratando da representação realista da realidade, ele diz nas páginas finais e na conclusão do livro que se tivesse de definir o que é o Realismo, por certo não teria escrito aquela grande obra.
Tudo isso aparece mais claramente nos ensaios dos grandes críticos; eu espero ter feito um pouquinho de nada disso no meu livro despretensioso, que em muito foi pensado para a situação de sala de aula.
Maravilha de entrevista! Curiosa pra ler o livro. Segue sem dúvida o melhor da tradição crítica do mestre Antônio Cândido e de Davi Arriguccu. O resultado é o prazer do saber na leitura.