Por: Renata de Albuquerque
Literatura, História e Política: Literaturas de Língua Portuguesa no Século XX chegou às prateleiras das livrarias brasileiras em 1989, mesmo ano em que o Muro de Berlim caiu – uma mudança profunda, do ponto de vista histórico, político e social.
Quase trinta anos depois, a Ateliê lança a terceira reedição da obra, um ensaio que discute o gesto que veio a configurar-se artisticamente numa forma nova, nas literaturas dos países de língua portuguesa. A análise do sentido político subjacente a essas produções da Modernidade levou à problematização das relações entre arte e engajamento, do poder de linguagem subjacente ao texto em seu circuito comunicativo e das articulações do campo intelectual nos países de língua portuguesa. A seguir, o autor Benjamin Abdala Jr, professor titular de Estudos Comparados da USP, fala ao Blog da Ateliê sobre este lançamento:
Por que trazer à luz este novo Literatura, História e Política?
Benjamin Abdala Jr: O livro teve sua origem na necessidade de se fazer face às assimetrias, visíveis nos finais dos anos da década de 1980, que iam do campo econômico até os da cultura. Num mundo em que o inglês tornou-se uma espécie de língua franca, era necessário também falar-se em português e outras línguas, como língua de cultura, de ciência e de tecnologia. Em ensaios posteriores, constantes em livros editados pela Ateliê, em especial Literatura comparada e reflexões comunitárias, hoje, temos enfatizado a necessidade política dos comunitarismos supranacionais, onde se situa o dos países de língua oficial portuguesa. Trata-se de uma nova repactualização política internacional – originária do crack financeiro de 2008. A partir do lócus enunciativo de quem se situa no Brasil, colocam-se dois enlaces principais, do ponto de vista literário e cultural: para os países de língua portuguesa e também dos iberoamericanos. Tais formulações não restringem outras políticas de cooperação e de solidariedade supranacionais, pois que o mundo configura-se cada vez mais como de fronteiras múltiplas e identidades devem ser situadas no plural. A partir dessas configurações, o livro Literatura, História e Política situa-se no comunitarismo cultural dos países de língua portuguesa, oriundo do hibridismo cultural das várias margens da Bacia Cultural Mediterrânica. Atualmente, como subjaz nesse livro, temos levantado questões de ordem política no sentido de problematizar a atual assimetria dos fluxos culturais e as estratégias de administração da diferença para a preservação de hegemonias estabelecidas.
Qual a importância de refletir sobre os neorrealistas hoje em dia?
BAJ: A tendência literária neorrealista surgiu após outro crack, o de 1929. Surgiu então essa literatura como resposta às assimetrias que então se agudizaram, paralelamente à ascensão de tendências socialistas e comunistas. Era o período entre guerras e nos EUA surgiram os romancistas da Era Roosevelt, como Hemingway, Cauldwell, Faulkner, etc., com uma escrita social que incorporava técnicas cinematográficas. No Brasil, a literatura dos Anos 30, com Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, etc. Na Itália, seguindo as pegadas do cinema, essa tendência recebeu o nome de Neorrealismo, designação que foi incorporada pela tendência contra a ditadura do Estado Novo salazarista. Hoje, a hipertrofia das assimetrias, que vão da economia até às esferas culturais, torna essa literatura de sentido sociopolítico necessária.
A literatura traz um modo de conhecimento da realidade, entrecruzando campos do conhecimento, que serão posteriormente incorporados por esses campos do conhecimento. Como se vê no livro, Graciliano Ramos em São Bernardo traz o perfil de um “capitalista selvagem”, que será posteriormente configurado por Florestan Fernandes em termos do recorte da sociologia. Hoje vivemos com a hegemonia de um modo de articulação que chega ao campo dos hábitos sociais e culturais: um mundo da fragmentação, onde se olha para o que está mais fácil em termos de lucro. Olha-se de lado e não para frente. Ler os neorrealistas é contrapor a perspectiva do projeto, do horizonte mais largo, a essas visões mais parciais, que se pautam pelo hiperindividualismo.
Desde 1989, quando da primeira edição, os contextos histórico e político mudaram grandemente. De que maneira isso influenciou esta nova edição?
BAJ: Como afirmei anteriormente, esse livro já obedecia a princípios que agora se explicitam de forma mais evidente: a hegemonia do capital financeiro sobre o industrial. E sua escrita era motivada pela necessidade de se buscar articulações supranacionais para fazer face às assimetrias e desconstruções que só favoreciam à ascensão desse capitalismo. A busca de um diálogo entre as culturas de língua portuguesa (e com ele as literaturas) contribuiria para a redução dessas assimetrias (que correspondem a novas formas de “colonização”). A par desse estudo, ficam também outras formas de comunitarismos, que já no livro aparecem, como o de gênero (o da condição feminina) e o étnico (o negro), que não se limitam aos países subalternos, como os da língua portuguesa.
Por outro lado, o livro – dialogando com a atualidade crítica – traz as articulações e também os traços básicos da formação de nossa literatura. No caso brasileiro, são enfatizadas produções não apenas dos Anos 30, sob a ditadura de Vargas, mas também sob a ditadura militar, da qual o país emergia (época de redemocratização); em Portugal, a ênfase na literatura neorrealista e sua contraposição com a ditadura estadonovista de Salazar; e nos países africanos, o olhar para o repertório dessas literaturas do Brasil e de Portugal, que apontavam para horizontes libertários político-sociais e também do colonialismo português.
Em sua opinião, os neorrealistas já são bem conhecidos pelos brasileiros? O que eles podem trazer para o leitor do Brasil que não conhece suas obras?
BAJ: No Brasil, os escritores de ênfase política e social dos Anos 30 continuam a serem lidos como autores clássicos. Há a necessidade de leituras de seus livros em termos de atualidade. Como a boa literatura desperta o sentido crítico em seus leitores, há a necessidade de lê-los como forma de conhecimento. O mundo mudou, mas os modos de articulação que perpetuam assimetrias em todos os campos da práxis humana continuam. Ganham novas roupagens em suas inclinações hegemônicas. E, por outro lado, o leitor crítico da tendência da literatura sociopolítica, embora com fatos registrados há décadas, pode verificar criticamente como eles perduram, com novas roupagens.
Por favor, comente a seguinte afirmação: “Foi assim que procuramos recuperar o sentido dos gestos dos escritores do novo humanismo que havíamos anteriormente estudado e as novas demandas que se colocam para uma literatura empenhada no competitivo mundo mercadológico desenhado pelo capitalismo financeiro”.
BAJ: Os gestos pautados pelo novo humanismo são aqueles de quem tem horizonte e efetua uma travessia rumo a essas luzes que devemos ter nesses horizontes. Evidentemente, o mercado desenhado pelo capitalismo financeiro leva à literatura de consumo, sem quaisquer criticidades. Entretanto, é próprio da boa literatura – como o foi a literatura analisada em Literatura, História e Política -, levar o leitor a refletir sobre os seus problemas e os problemas da vida social, que continuam atuais. Se antes predominava um modo de articulação afinado com o capitalismo agrário ou mesmo industrial, agora é a vez do financeiro, onde se olha para o lucro mais imediato. Isto é, em termos gerais, para articulações sejam elas econômicas e culturais, de horizontes restritos, visando ao consumo imediato.
O leitor leigo também poderá se beneficiar de Literatura, História e Política?
BAJ: O livro mostra-se de interesse para os estudiosos das literaturas de língua portuguesa e para o leitor em geral. Este último, nele encontrará modos de leitura reflexiva que dialogam com a vida sociocultural contemporânea. Logo, de forma simétrica em relação às produções analisadas, também formas de entender criticamente a realidade em que nós nos situamos. E de encontrar instrumentos para fazer face às assimetrias que nos são impingidas desde os centros hegemônicos.