Um Fernando Pessoa simbolista
O “drama estático” O Marinheiro, de Fernando Pessoa, foi publicado na revista Orpheu em 1915. Nas palavras de José De Paula Jr., coordenador da Coleção Clássicos Ateliê (que acaba de lançar uma nova edição da obra incluindo fac-símile e transcrição fidedigna da publicação original), trata-se de um texto no qual “fantasia e imagens enigmáticas mesclam-se de tal modo com a realidade que se torna difícil ou impossível separar sonho de experiência empírica”.
Leia abaixo um trecho desta nova edição.
drama estático em um quadro
SEGUNDA – Todo este país é muito triste… Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe… Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse…
PRIMEIRA – Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!… O mar de outras terras é belo?
SEGUNDA – Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca…
(uma pausa)
PRIMEIRA – Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?
SEGUNDA – Não, não dizíamos.
TERCEIRA – Por que não haverá relógio neste quarto?
SEGUNDA – Não sei… Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria… Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?
PRIMEIRA – Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo dezembros na alma… Estou procurando não olhar para a janela… Sei que de lá se veem, ao longe, montes… Eu fui feliz para além de montes, outrora… Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não mas tirassem… Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar… Foi longe daqui que isto pôde ser… Quando virá o dia?…
TERCEIRA – Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira sempre, sempre, sempre…
Trecho de O Marinheiro, de Fernando Pessoa. Edição de Antônio Apolinário Lourenço, Coleção Clássicos Ateliê
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com a palavra, Jaa Torrano:
“traduzir Édipo Rei foi um trabalho obsessivo e solitário”