Rogério Borges | O Popular | Seção: Magazine | Pág. 01 | 28 de dezembro de 2014
Poeta da experimentação, Décio Pignatari também era contista, cronista de futebol e dramaturgo. Essas outras facetas podem ser conferidas em coleção que acaba de ser lançada
Brincar com as letras, fazê-las cair e subir nas frases, incitá-las a formar novos vocábulos, outros sentidos, despertar os segredos que o idioma pode guardar usando para isso a criatividade e a experimentação. Assim agiam os concretistas, poetas que emprestavam aos versos a ousadia das artes plásticas, unindo linguagens, reinventando métodos, retirando as teias de aranha do cérebro de seus leitores que precisavam se esforçar para traduzir obras literárias que também eram arquiteturas gráficas cheias de símbolos, traquinagens e ludicidade. Um dos expoentes desse movimento da literatura nacional dos anos 1950 foi Décio Pignatari, que morreu em 2012. O autor, irreverente e polêmico, está sendo resgatado em uma coleção, que revela outras de suas habilidades.
As obras Viagem Magnética, Terceiro Tempo e O Rosto da Memória trazem três facetas que nem todo mundo conhece da produção do escritor. O primeiro é uma peça de teatro, a segunda que escreveu em sua carreira e que foi composta em sua última década de vida. Terceiro Tempo revela um Pignatari que, com verve ferina, encaminha-se para um humor saboroso ao escrever crônicas de futebol. São 26 textos publicados em 1965 no jornal Folha de S. Paulo. Por fim, O Rosto da Memória é um volume de contos em que se vê (e não só se lê) com maior nitidez as marcas registradas desse concretista, em que a linguagem e a diagramação do texto nas páginas sugerem outras concepções do enredo, a começar com inversões nos títulos e subversões na forma narrativa.
Os três títulos, lançados em conjunto pela Ateliê Editorial, dão uma nova roupagem a obras de Décio Pignatari que ficaram eclipsadas por sua intensa participação, junto com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, em uma das principais vanguardas culturais que o Brasil produziu no século 20 nos campos da literatura e das artes. Além disso, ele tornou-se uma referência na publicação de obras teóricas e de crítica, além de destacar-se como tradutor. Foi ainda uma autoridade internacional nos estudos de Semiótica, sendo membro e até fundador de diversas associações de semiologia no Brasil e no exterior. Outra habilidade que o autor chegou a exercer com alguma frequência foi o de publicitário, contribuindo até com reflexões sobre Teoria da Comunicação.
Com múltiplas atividades, não seria de se espantar que Décio tivesse outro tipo de produção literária que não se concentrasse apenas na poesia. A reedição desses livros, assim, não surpreendem por trazer o que trazem e sim por esses textos terem ficado recolhidos a um esquecimento que, em certos casos, durou décadas. A reunião de crônicas nunca havia sido publicada em livro, e olha que lá se vão 50 anos que chegaram pela primeira vez aos leitores. O volume de contos estava fora de catálogo há quase 30 anos. Talvez por sua trajetória singular, Décio Pignatari tenha criado em torno de si uma imagem de vanguarda que chegava a assustar, prejudicando, dessa forma, sua produção literária mais aberta a grandes públicos, em que não há códigos intrincados de interpretação.
Os livros
Essa obra teatral de Décio Pignatari era inédita até agora. Ela foi escrita entre 2004 e 2007 e é baseada na vida de Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo da potiguar Dionísia Gonçalves Pinto, uma mulher de vanguarda no século 19. Radicada no Rio de Janeiro, foi educadora e dona de um dos principais colégios da então capital do Império, além de poetisa e uma das pioneiras na divulgação das ideias positivistas de Auguste Comte entre a intelectualidade nacional. Para dar a dimensão dessa personagem, Pignatari coloca em cena diversas personalidades do Brasil daquela época, como os escritores Fagundes Varela, Gonçalves Dias e Bernardo Guimarães, que testemunham como a protagonista sofre em impor a sua aguçada inteligência a convivência com afetações e convenções sociais pueris e vazias. É como se o autor tivesse se identificado com a inquietude de Nísia, demonstrando isso em cenas curtas, picotadas e enervantes. A grande cultura que essa mulher possuía choca-se com a fragilidade intelectual de muitos que a cercam.
(120 páginas, R$ 27)
Não é qualquer um que teve o privilégio de ver alguns dos maiores craques do futebol brasileiro jogando na era de ouro de nossa paixão nacional. Décio Pignatari foi um desses premiados e escreveu a respeito em uma série de 26 crônicas publicadas no jornal Folha de S. Paulo em 1965. Naquele tempo em que o Brasil era bicampeão mundial e preparava a maior de suas seleções, a do tricampeonato de 1970, o escritor percebeu que assistia verdadeiros gênios em ação, como a locomotiva santista duas vezes campeã do mundo, capitaneada pela tabelinha Pelé e Coutinho. Outros clubes também mereciam atenção do escritor, como o antológico Botafogo, que tinha de um lado do campo Garrincha e do outro Nilton Santos, simplesmente o maior ponta-direita e o melhor lateral esquerdo da história do futebol. Despejando admiração e fazendo isso de formas menos óbvias, Pignatari imortalizou em suas crônicas o talento de Rivellino e a elegância de Ademir da Guia, sem deixar de perceber, já naqueles tempos, a influência da política no esporte.
(128 páginas, R$ 29)
Não esperem encontrar uma obra convencional nesse volume de contos, publicado pela primeira vez em 1986 e só agora reeditado. O tema central do livro já dá uma pista de que Décio Pignatari deu vazão a sua veia de vanguarda ao escrever as narrativas curtas que compõem o volume. Ele trata de como as imagens são fundamentais para inscrever nas recordações nossas vivências e visões de mundo. Para isso, o escritor promove uma série de provocações, em que abundam sinais gráficos, em fontes diferenciadas e até em fotos e mapas para incitar a imaginação do leitor. Enquanto um conto tem uma única e solitária frase, outro despeja uma torrente de palavras (várias delas rabiscadas ou encadeadas um tanto confusamente), causando certo choque em quem segue os enredos que podem estar cheios de ternura e inocência ou recobertos de vitupérios e palavrões. Retirando o título das Confissões, de Santo Agostinho, Décio Pignatari convida a uma viagem literária imprevisível.
(168 páginas, R$ 38)