Alex Sens*
Por mais que os meios de comunicação produzam e divulguem formas variadas de nutrição, hábitos alimentares e discutam culturas gastronômicas tão visualmente estimulantes a fim de se repensar a saúde e o bem-estar humano em diversas áreas do cotidiano, é uma tarefa mais difícil e talvez impossível tocar a história da alimentação, entender sua raiz, como ela teve início, onde e como se apoiam as publicações hodiernais e o quanto estas são ou não afetadas por antigas tradições. Existe um número absurdo de publicações impressas sobre como se alimentar bem, tanto a partir de receitas quanto a partir de pesquisas médicas, no entanto, a título de curiosidade e valor históricos, é interessante saber como chegamos até aqui, o que ainda comemos, bebemos e preparamos em comparação com nossos antepassados.
Publicado pela primeira vez em 1721 e reeditado com glossário e linguagem atualizada por uma equipe de professores universitários quase três séculos depois, o compêndio nutricional Âncora Medicinal — Para Conservar a Vida com Saúde, de Francisco da Fonseca Henriquez, não é apenas o primeiro tratado sobre alimentação em língua portuguesa, nem apenas um registro de historicidade médica, mas também, e sobretudo, uma obra que discute e enfatiza a importância de ter uma boa qualidade de vida e os meios para se obtê-la. O autor, mais conhecido como Dr. Mirandela, foi médico do rei D. João V e cuidadosamente criou essa espécie de manual que mostra em suas 300 páginas que tanto os alimentos quanto os sentimentos, as chamadas “paixões da alma”, afetam diretamente a saúde e o funcionamento do corpo.
Logo no início, o médico apresenta as seis coisas “não naturais” que conservam a saúde: o ar ambiente, o comer e o beber, o sono e a vigília, o movimento e o descanso, os excretos e os retentos, e finalmente as paixões da alma. Conforme explica, antes de longos capítulos em que destrincha cada um desses itens,
“quem respirar bons ares, quem, com moderação e prudência, usar bons alimentos, quem dormir com sossego as horas que bastem, quem fizer exercício como deve, quem trouxer a natureza bem regulada nas suas evacuações e quem não tiver paixões que lhe alterem a harmonia dos humores não pode deixar de ter boa saúde”.
Ao longo de várias seções, Dr. Mirandela cita os pensamentos e os legados de Pitágoras, Aristóteles e Hipócrates, usando a história para enfatizar suas próprias lições. Comenta a importância de comer com moderação, pois, mesmo os melhores alimentos, “tomados com insaciável voracidade”, são sempre danosos, além de discutir a frequência da alimentação e a famosa e antiga questão sobre o quanto comer no almoço e no jantar.
Algumas curiosidades saltam aos olhos durante a leitura das seções sobre alimentos específicos, como no caso dos pães, grãos e carnes, sendo estas “de animais machos melhores que as das fêmeas porque os machos têm maior calor e agilidade”, além da informação no capítulo sobre entranhas de que testículos de animais novos “nutrem muito”. Há um longo capítulo sobre ovos e peixes, outro sobre legumes, em que a chicória aparece como uma “hortaliça verdadeiramente toda medicamento” e a acelga que “purga as umidades da cabeça” quando seu sumo é sorvido pelo nariz. Em raízes, descobrimos que o cozimento da raiz e das sementes do aspargo era indicado para dor de dente. Em seguida, o médico registra uma rápida explicação sobre os diversos tipos de água, como bebê-la e sua temperatura ideal. Antes de concluir a edição com um glossário muito interessante que nos mostra o uso de algumas palavras de caráter médico do século XVIII, o leitor ainda descobre para quê e quando eram e não eram receitadas bebidas alcoólicas como cerveja e vinho, que quando doces, são recebidos pelas entranhas “com desejo”.
Âncora Medicinal é isso: um livro que mostra com clareza e simplicidade que a saúde se sustenta por duas bases muito ensinadas, repetidas e conhecidas até hoje: exercícios físicos e alimentação moderada. Além disso, é um retrato curioso, instigante, verdadeiro e às vezes estranho sobre um tempo distante num mundo distante, no entanto também muito próximos dos nossos.
*Escritor, nascido no ano de 1988 em Florianópolis, SC, e radicado em Minas Gerais. Publicou Esdrúxulas, pequeno livro de contos de humor negro e realismo mágico, seguido pelo livro artesanal Trincada. Teve contos e poemas publicados em sete coletâneas e em revistas literárias virtuais, assim como resenhas de livros, entrevistas e críticas em sites de jornalismo cultural. O Frágil Toque dos Mutilados (Autêntica Editora, 2015), seu romance de estreia, venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2012 na categoria Jovem Escritor.