Por Renata de Albuquerque*
“Traiu ou não traiu?”
“Olhos de cigana oblíqua e dissimulada”
“Capitu amava Bentinho?”
É incrível que um romance publicado no fim do século XIX ainda hoje, em pleno século XXI, ainda pareça ser tão popular, ao menos na superfície. Afinal, até quem nunca abriu uma página de Dom Casmurro já ouviu falar em ao menos uma dessas frases. Claro que muito disso se deve ao fato de que Dom Casmurro, romance de Machado de Assis, publicado em 1899, tornou-se um clássico da literatura brasileira, solicitado em inúmeras provas de pré-vestibular como uma leitura obrigatória – o que o fez obrigatório também no currículo do Ensino Médio, desde que as pessoas escolhiam entre o “Clássico”, “Normal” e “Científico”. Talvez por isso também muita gente não consiga se encantar com a história contada por Bento de Albuquerque Santiago, o Casmurro do título, que na infância era chamado de Bentinho. Afinal, nada do que é obrigatório parece interessante.
Mas, por trás dessa obrigatoriedade que o vestibular “exige”, há um livro genial, construído com muita perspicácia, por um autor que faz da ironia sua melhor ferramenta de critica social, que constrói personagens complexos e que pode fazer com que o leitor tenha uma das experiências literárias mais interessantes de sua vida.
Dom Casmurro, que na infância fora chamado de Bentinho, narra o romance em primeira pessoa. Logo no segundo capítulo (depois de explicar o apelido, dado por um poeta) ele explica a razão que o leva a escrever aquele romance: “atar as duas pontas da vida”, rememorando sua existência. Entretanto, logo se vê que o ponto central da narrativa é o ciúme que Bentinho sente por Capitu.
Bentinho e Capitu
Vizinhos. Assim são Bentinho e Capitu, duas crianças que convivem no Rio de Janeiro, por volta de 1857. Ele, mais abastado, é órfão de pai e mora com a mãe, dona Glória, o tio Cosme, a prima Justina e o agregado José Dias. Capitu, apelido de Capitolina, é filha de Dona Fortunata e Pádua. Capitu e Bentinho tornam-se amigos, mas apesar de nutrirem um sentimento que vai além da amizade, Bentinho é enviado ao seminário, onde conhece Ezequiel Escobar, de quem torna-se amigo. Mais tarde, Bentinho sai do seminário, vai estudar Direito e casa-se com Capitu. Escobar também se casa com Sancha, amiga de Capitu. Nasce Ezequiel, filho de Capitu – e que Bento Santiago desconfia ser fruto de uma relação entre ela e Escobar (já que o nome da criança é dado em homenagem ao amigo).
O ciúme leva Bentinho a separar-se de Capitu, que vai com o filho para a Europa, onde morre. O filho volta, tenta reatar com Bentinho, mas também morre. O amigo Escobar morre afogado no mar.
Tantas mortes são a razão pela qual as dubiedades – que tornam o romance tão genial – possível. Com todos mortos, só Bentinho (que narra a história) foi testemunha dela. E, com isso, pode contar o que melhor lhe convier.
A traição de Capitu
A dubiedade que marca o romance (a forma como é narrado, os interditos, a complexidade psicológica de Bentinho e Capitu, o comportamento singular do agregado José Dias) é a chave para entender que a velha pergunta “traiu ou não traiu?” não é a parte que interessa a Machado de Assis.
Com Dom Casmurro, o escritor constrói uma obra muito maior do que seria se fosse dedicada a levar o leitor a descobrir se houve ou não infidelidade. O grande jogo consiste na chance que o autor dá ao leitor de desconfiar desse narrador (que deixa pistas de sua inconstância e nos dá motivos para tal desconfiança ao longo de todo o romance).
É bom dizer que nem sempre essa dúvida existiu. Apenas em 1960 (portanto mais de sessenta anos depois da publicação da primeira edição de Dom Casmurro), a pesquisadora Helen Caldwell trouxe a público seu estudo O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, em que defende a inocência de Capitu tomando por base indícios do próprio texto machadiano. Tudo isso explica porque Dom Casmurro é um livro imenso, talvez um dos mais importantes da literatura mundial. E ajuda a explicar porque, para além da obrigatoriedade escolar, ele merece ser lido por quem deseja tornar-se um leitor mais experiente, mergulhando nas águas fundas do raro estilo machadiano, cheio de humor e uma fina e aguda ironia, que coloca o leitor no como parte atuante do jogo narrativo.
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*Jornalista, Mestre em Literatura Brasileira pela FFLCH/USP, autora da Dissertação Senhoras de Si: o Querer e o Poder de Personagens Femininas nos Primeiros Contos de Machado de Assis.