“Ao planejar a viagem, eu só tinha desejado uma coisa: ficar sozinho, com a minha moto, a maior parte do tempo”. Este foi o mote de Paulo Franchetti e que deu origem ao livro A Mão do Deserto, publicado pela Ateliê Editorial. De forma literária e de um relato preciso desde o planejamento da viagem, passando pelo trajeto de 11 mil quilômetros, até o final da jornada, o autor nos leva junto na garupa em uma narrativa imersiva e emocional, colaborando para um itinerário de espaço e tempo, do humano e máquina, da imensidão da paisagem da América do Sul, de um estrangeiro em busca de um desafio a duas rodas.
Contra a expectativa nascida da visão do percurso desde baixo, a subida do último trecho não foi difícil. Não havia trânsito, o sol ainda estava alto e o gps mostrava que eu ainda teria quase três horas antes do pôr do sol. Em pé sobre as pedaleiras, sentia que a roda traseira às vezes se movia em falso e que as pedras eram atiradas com força. A roda dianteira de vez em quando oscilava um pouco. Lembrei-me das lições de off road que tomei há tempos e não tentei firmá-la. Tampouco olhei para o chão próximo da roda, mas fixei a vista no horizonte da estrada, deixando à visão periférica o controle do mais imediato. E assim prossegui, para o alto. O barulho de pedras esfregadas umas contra as outras sob os pneus era desafiador e bom, e eu sentia, mais do que percebia de soslaio, aquela paisagem que ia se desdobrando cada vez mais, a perder de vista (p. 13)
Na obra, Franchetti aborda a sua aventura solitária, sobre uma motocicleta, até o Atacama, além de ser uma vontade própria de desbravar, também, o deserto íntimo. “Eu tinha idealizado a viagem para que fosse também (ou principalmente) uma viagem interior”, o que prova que não é apenas um livro de viagem, mas a evocação das memórias junto às instigações que despertam as histórias de um motociclista entre as maravilhas das paisagens aos reveses enfrentados na viagem
A Mão do Deserto é um livro GPS com destino traçado, mas de percursos vislumbrantes de um amante da literatura e da motocicleta. O leitor é conduzido com celeridade narrativa, mas nunca ultrapassando a boa leitura, entrando de vez na história, viajando pelos lugares monumentais, conhecendo personagens memoráveis e relatos emotivos, combinando, enfim, um ponto de encontro com o autor.
Para chegar às ruínas é preciso sair da Ruta e seguir uns cinco quilômetros. A cidadela tem uma vista dominante sobre o vale. Sem a história, aquelas plataformas que vão subindo o morro, sobre as quais se distribuem paredes destruídas e restos de alicerces, não têm grande atrativo. Mas a visão se altera quando sabemos que ali, na cidade sagrada, viveram os Quilmes, que depois de lutar com os incas invasores e garantir o direito de continuar a viver nessas terras, enfrentaram os recém-chegados espanhóis. Resistiram, naquele monte que então começava a parecer-me um grande anfiteatro, por um século e meio, até serem finalmente derrotados e aprisionados. Os sobreviventes, cerca de duas mil pessoas, foram transferidos para uma reserva perto da cidade de Buenos Aires, numa viagem de mais de 1500 quilômetros, que foi feita a pé, deixando muitos mortos pelo caminho. (p. 78).
O AUTOR
Paulo Franchetti foi professor titular no Departamento de Teoria Literária da Unicamp e presidente da editora da mesma universidade por muitos anos. Publicou pela Ateliê Editorial os livros de estudos literários: Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa e Crise em Crise – Notas sobre Poesia e Crítica no Brasil Contemporâneo. Publicou também o livro de ficção O Sangue dos Dias Transparentes e A Mão do Deserto (memória de viagem), além dos livros de poesia: Deste Lugar, Memória Futura, ente outros. Seu livro de haicais, Oeste, representa uma das mais admiráveis experiências na recente poesia brasileira. Para a coleção Clássicos Ateliê organizou também O Primo Basílio, Dom Casmurro, Iracema, O Cortiço, A Cidade e as Serras, Clepsidra e Esaú e Jacó.
Assista Pilotando 2019 (Norte da Argentina e Deserto do Atacama):