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Em torno do último inédito de Décio Pignatari

Gustavo Fioratti | Folha de S.PauloIlustrissíma| Pág. 03 | 16 de novembro de 2014

Prestes a ser lançado em livro, o único texto inédito de Décio Pignatari é uma peça de teatro em versos sobre a vida de Nísia Floresta. Escritora e educadora, a brasileira precursora do feminismo, que frequentou salões de intelectuais na Europa, inspirou o poeta a compor uma obra sobre o papel da mulher no século 19.

livros_do_decio_convite1Em algum lugar entre 2004 e 2007, seus familiares não sabem precisar quando, o poeta, tradutor e ensaísta Décio Pignatari (1927-2012) viajou a Nísia Floresta, no Rio Grande do Norte, para conhecer a terra natal da poeta que deu nome ao município, hoje com 22 mil habitantes. Por aquelas paragens, conversou com muita gente, mas uma frase marcou-o mais profundamente: ora anônimo, um morador da cidade definiu Nísia Floresta (1810-85) como uma “prostituta internacional”.

Pignatari achava certa graça nessa síntese. “Como se fosse fácil ser uma prostituta internacional para uma mulher que saiu do sertão no século 19”, disse certa vez a um de seus três filhos, Dante Pignatari. Dante é o responsável pelo espólio de uma obra que inclui pinturas, poemas, contos e ensaios, além do histórico legado de rasgos poéticos que, ao revelar a potência visual das palavras, fundaram o concretismo, o que foi feito ao lado dos irmãos Campos, Augusto e Haroldo.

Décio Pignatari em retrato de 1965
Décio Pignatari em retrato de 1965

Nessa metafórica referência a Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, também educadora, não cabe a síntese da vida de uma mulher que traçou uma trajetória toda ela singular. Pioneira do feminismo no Brasil, perdeu o pai assassinado no Recife, casou-se, teve filhos, mudou-se para o Rio Grande do Sul e, depois, para o Rio de Janeiro, lá fundando uma escola para moças. Em 1949, embarcou com a filha para a Europa, onde fez parte do círculo de amizades de Auguste Comte, com quem se correspondeu por anos.

Pois a última obra de Décio Pignatari -possivelmente o único volume inédito que ele deixou antes de morrer, em 2012, em decorrência de complicações respiratórias, aos 85 anos- é uma peça teatral em versos baseada na vida e obra de Nísia. O livro que a traz a público, “Viagem Magnética” [Ateliê Editorial, 120 págs, preço a definir] sai nesta semana, ao lado de outras publicações do autor: “Terceiro Tempo”, um volume de 26 crônicas de futebol publicadas em 1965 pela Folha, e a reedição de “Rosto da Memória”, de contos, primeira incursão de Décio na prosa.

PALCO

Não surpreende que a última obra de Décio Pignatari tenha sido para o teatro. Em sua juventude em Osasco, após a infância em Jundiaí, no interior paulista, ele foi ator e participou de uma companhia amadora chamada Teatro de Cartilha. Só depois formou-se em publicidade e desenvolveu interesse por semiótica e pela obra do norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914).

O título da peça inédita, Décio tomou emprestado de um ensaio homônimo de Nísia, do livro “Cintilações de uma Alma Brasileira” -editado pela primeira vez na Itália, em 1859, o volume saiu no Brasil pela Edunisc, 1997.

No original, a poeta fala sobre a condição do exílio, sobre amigos e familiares que ficaram no Brasil e cria diálogos fictícios, os quais revelam a angústia de viver em um lugar distante, como este em que fala seu filho deixado para trás: “Eis-me, mãe terna e bem-amada; eis-me aqui, para te consolar com minha querida irmãzinha e para não mais te abandonar”. “Prostituta internacional”, cabe dizer, distorce o perfil da mulher inconformada com seu tempo.

Na peça, Pignatari se apropria desse perfil para criar algo que ficaria entre a epopeia (não integralmente em versos) e o teatro épico de Oswald de Andrade, cuja peça “O Rei da Vela” o poeta quis encenar com seu Teatro de Cartilha, segundo atesta Augusto de Campos. “‘O Rei da Vela’ foi anunciado, mas a peça não chegou a ser montada porque Décio e [sua mulher] Lila embarcaram para a França, pouco depois, em abril ou maio de 1954, e ele só voltou em 1956, nas vésperas da Exposição Nacional de Arte Concreta no MAM”, diz o amigo.

MOSAICO

Nísia, em sua viagem, como em um delírio, vai atravessando um mosaico de referências que Pignatari pesca da arte grega pré-socrática, de sua admiração pela poeta grega Safo de Lesbos, dos românticos e do modernismo. Ele faz de sua personagem uma flecha atravessando camadas do tempo e que, no fim, traça o que o filho do autor, Dante, chama de “uma leitura que Décio faz do Brasil desde a época de Visconde de Mauá (1813-89), cujo projeto desenvolvimentista foi boicotado por d. Pedro 2º, um escravagista”.

Mauá está entre os personagens da peça e surge quase como um bufão. Logo no início da ação participa brevemente, satirizando a lentidão dos passos do império com a frase: “O imperador vai inaugurar os primeiros 23 km de ferrovias do Brasil, mesmo não gostando do meu passado farroupilha e dos bancos que estou fundando”.

Nísia, nesse ponto, está prestes a deixar a terra natal, com toda sua herança de colônia portuguesa. O texto, então, mira a projeção do futuro incerto, que apresenta como figuras míticas, ainda distantes das terras de Cabral, os pensadores europeus. Algum sentido revolucionário se aproxima de qualquer forma. No início da trama, o leitor passa pela figura do pensador José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), defensor da independência do Brasil e do fim da escravidão. Depois, intercalam-se menções aos franceses e alemães.

Com sua filha Lívia, já na Europa, Nísia ganha a companhia da escritora alemã Malwida von Meysenbug (1816-1903), amiga de Wagner e Nietzsche, que, na peça, tem falas cômicas sobre a emancipação da mulher. Como nesta lição: “Eles [os homens] se estendem na poltrona, e você fica de quatro, nua ou vestida, para que esfreguem os pés e relaxem as pernas e as bolas que pendem no meio delas, enquanto dão largas ao seu espírito criativo”. Depois: “O macho virou homem antes que a fêmea virasse mulher. Esta surgiu como que de repente, não de costela, nem de ventre, mas da cabeça de Zeus, adulta, armada e virgem”.

O olhar do autor sobre “o século que abrigou as musas romântica e positivista” não se dá “em chave passadista ou anacrônica”, afirma Welington Andrade, ensaísta e professor de literatura da Faculdade Cásper Líbero, na apresentação ao texto. “O que mais chama a atenção na feitura da obra é o fato de o dramaturgo ter feito uma série de conteúdos comportamentais, artísticos e intelectuais do ‘Ottocento’ que estão na base de nossa modernidade precipitarem-se em formas propriamente modernas, em virtude da perspectiva sincrônica que Décio, como autêntico representante do movimento concretista, sempre procurou fazer incidir sobre as mais variadas manifestações culturais e artísticas de todos os tempos”, escreve.

“Viagem Magnética” é também a segunda parte de uma trilogia incompleta que inspirou-se em obras eróticas e no papel da mulher no século 19. A primeira peça teatral da série foi “Céu de Lona” (Travessa dos Editores, 2003, esgotado), centrada na vida de Machado de Assis e de sua mulher, Carolina. A terceira parte seria um texto sobre Regine Olsen (1822-1904), noiva do filósofo e teólogo dinamarquês Kierkegaard (1813-55).

A personalidade ao mesmo tempo austera e bem-humorada do autor contamina “Viagem Magnética” do início ao fim. Pignatari era um intelectual metódico, o que explica em parte uma narrativa que se alimenta de um acúmulo de referências enciclopédicas. “Ele tinha uma capacidade de concentração assustadora. Lia rigorosamente xis horas por dia. Tinha todo um esquema, uma poltrona, luz, pequenas estantes que ele mandava fazer para apoiar os livros”, conta Dante.

ÚLTIMO ROMÂNTICO

Numa comparação um pouco leviana, talvez seja possível relacionar o interesse pelos românticos a uma indisposição com a tecnologia. Décio não usava computadores. Os e-mails que recebia eram impressos. Ele os respondia a punho e alguém então redigia a resposta digitalmente. Seus textos eram ou manuscritos ou datilografados na velha máquina Lettera 22 portátil e em outra Olivetti.

O autor acreditava, diz Dante, que a sociedade ocidental “era fruto do que os românticos fizeram”, incluindo a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, com todos os ideais de liberdade, igualdade e democracia. “As peças também são sobre mulheres porque é no romantismo que elas se liberam.”

“Viagem Magnética” começou a ser escrita provavelmente em 2004. Na época, morando em Curitiba, Décio lecionava na Universidade Tuiuti do Paraná. Segundo a professora Denize Araújo, amiga que fazia parte do apelidado “petit comité”, Pignatari “estava sempre bem-humorado”. Vangloriava-se de poder ver, da janela de seu apartamento, o Museu Oscar Niemeyer, que apelidou de “olho de Big Brother”. Gostava de festejar seus aniversário, no dia 20 de agosto. Os alunos o adoravam, e seus orientandos “sempre se sentiram privilegiados”.

Para finalizar a peça, Pignatari alugou, por um mês, em 2007, uma casa na cidade italiana de Ferrara. O texto foi passado a limpo à mão, em um caderno de brochura e capa dura. Depois, foi encaixotado. Passaram-se os anos, e Décio esqueceu-se dele, como se esqueceu de outras coisas mais, acometido pelo mal de Alzheimer.

O Alzheimer “é cruel e vertiginoso”, afirma Dante. “E, com ele, foi mais ainda. Foi tudo muito rápido, ele morreu em no máximo dois anos contando a partir do diagnóstico”. Olhando em retrospectiva, no entanto, familiares sabem hoje que Décio Pignatari percebia o mal aproximar-se aos poucos. “Ele escondeu de nós.”

Uma leitura de “Viagem Magnética” está programada para o dia 9 de dezembro, às 20h, no Centro Cultural São Paulo. Mais do que um teste, será a prova dos nove, pois o escritor, como recorda seu filho, reclamava da falta de técnica de atores brasileiros -especialmente para interpretar textos em versos.

Confira também todas as obras do autor publicadas pela Ateliê.

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