Em comemoração aos 80 anos de Chico Buarque, a professora Adelia Bezerra de Meneses, ganhadora do Prêmio Jabuti de 1982 com o aclamado livro Desenho Mágico, análise das canções de Chico contra a ditadura da época, nos traz mais um livro abrangente: Chico Buarque ou a Poesia Resistente.
Esse novo livro de Adelia Bezerra de Meneses aborda as recentes canções de Chico Buarque, como Que Tal um Samba?, As Caravanas, Massarandupió, Tua Cantiga, bem como outras, paradigmáticas, de CDs anteriores: Renata Maria, Tempo e Artista, Sinhá, e a trilogia que integra o livro Terra, de Sebastião Salgado: Levantados do Chão, Assentamento e Fantasia (aferidos a um texto inédito de Antonio Candido, sobre o MST). O livro está em promoção de pré-venda no site da Ateliê Editorial – De: R$115,00 – Por: R$80,00. (COMPRE AQUI).
PERGUNTA – Professora, como se deu a ideia e escolhas das canções analisadas?
RESPOSTA – O critério foi tratar de canções sobre as quais eu não tinha ainda publicado. E dentre esse repertório recente, a escolha se fez por afinidade, por sentir-me tocada por uma determinada canção, por prazer de mergulhar nela, tentando mostrar, com os recursos da análise literária, o motivo pela qual ela me atingiu. Num primeiro momento é mais uma questão de sensibilidade do que uma valorização intelectual; mas no momento seguinte, eu funciono como crítica literária, tentando dar conta da razão pela qual a canção tem eficácia estética.
É assim que em Poesia Resistente são analisadas / interpretadas 10 canções, que abarcam a variedade temática de Chico Buarque, desdobrando-se do lirismo nostálgico de “Massarandupió” (em que o tema remete à infância, de uma maneira geral, mas especialmente à infância do neto, Chico Brown, parceiro na melodia dessa canção); ao lirismo amoroso de “Renata Maria” e de “Tua Cantiga”; à crítica social de “Sinhá”, de “As Caravanas”, de “Que tal um samba?” e “Levantados do Chão”; e à vertente utópica de “Fantasia” e de “Assentamento”. Importa dizer que essas três últimas canções fazem parte do CD “Terra”, do livro de mesmo nome do Sebastião Salgado, com fotos do MST (Movimento dos Sem Terra). E o livro finaliza com “Tempo e Artista”, uma belíssima canção que tematiza o tempo em seu aspecto criador, o que a torna singularmente sugestiva no contexto das comemorações dos oitenta anos do Autor:
Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela
[…]
“o velho cantor subindo ao palco
apenas abre a voz, e o tempo canta”.
Mas, de fato, eu não me restringi a esse elenco: várias dessas canções escolhidas implicaram na abordagem de outras produções mais antigas, com as quais elas conversam. É assim que “Massarandupió” deu a oportunidade para tratar de “Maninha” e João e Maria; “Que tal um samba?”, produzida nos anos bolsonaristas, e que fala de tempo feio, estrago, fundo do poço, ignorância e dor, dialoga com as canções de repressão da Ditadura de 64, a saber, “Quando o Carnaval chegar”, “Cálice”, e “Apesar de você”. Com efeito, são canções irmanadas em suas condições de produção, engendradas em tempos de opressão política e de erosão democrática, respectivamente os 21 anos de Ditadura Militar (de 1964 a 1985) e os anos de boçalidade e obscurantismo da época bolsonarista (2018-2022). Quanto a “Tempo e Artista”, é uma canção que conversa com “Roda Viva”, “Essa pequena” e com “Todo Sentimento” (que todas, têm como foco a questão do “tempo”).
P – Críticos apontam que a as letras de resistência e de questões sociais de Chico Buarque ficaram no passado. Porém, com as análises da professora percebemos que não. Qual é a sua opinião sobre essas críticas?
R – Uma olhada no elenco das canções do Chico deixa inequívoco que o que você chama de “questões sociais” está presente ao logo de toda sua produção. O que se pode falar é que durante a época de Ditadura implantada em 64, coincidindo com os inícios da sua produção, era um pouco a função – quase que ia dizer a missão – dos artistas conscientes: denunciarem, seja diretamente, seja através da ironia, a falta de liberdade e a repressão daqueles anos de chumbo. (Mas, um parênteses importante: mesmo nesse período, Chico nunca deixou de ser um cantor do amor e cantor do feminino.) Com o retorno da democracia, Chico se desobrigou de ser um “profissional do protesto”, mas o poeta social continua.
E de fato, a poesia não precisa enquadrar-se numa temática social para ser aquilo que Alfredo Bosi chama de “poesia resistência”, isto é, “uma forma de resistência simbólica aos discursos dominantes”. Efetivamente, num mundo massificado, globalizado, de exploração generalizada, de mercantilização das relações, sociedade da mídia e da cultura do espetáculo, como poderia a grande poesia ser de concordância e de adesão? De fato, em tempos adversos como o nosso, a grande poesia nunca duplicará a ordem social reinante, mas a confronta. É assim que se pode falar de um fundo inapelavelmente “anti-burguês” das canções de Chico Buarque, sempre a contrapelo da ideologia dominante. Peguemos uma canção inapelavelmente lírica, como “Renata Maria”, ou como “Sobre todas as coisas”: dizer o afeto, dizer o amor, nessa realidade alheia e hostil, é resistir.
Mas a crítica social – revestida da ironia – continua presente, na atualidade, Duas das grandes produções nessa linha datam dos últimos Cds lançados: “Que tal um samba?” é de 2022; e “As Caravanas” é de 2017.
“Que tal um samba?” apresenta um convite metafórico: restaurar uma situação de estrago, aludindo a um sofrimento imposto. A canção foca nessa contribuição fundamental dos afro-brasileiros, o samba, evocando locais tradicionalmente considerados seu berço – Valongo, Gamboa, Pedra do Sal – que, numa primeira camada, são lugares de diversão e de cultura de matriz africana, mas que, numa outra camada, se revelam espaços de memória da Escravidão e seu horror. E uma “leitura ideológica” aponta ainda uma outra camada, uma história de curta duração: o que poderia estar por detrás da dor coletiva aludida, tendo como referente histórico recente a necro-política bolsonarista.
E que dizer de “As Caravanas”? Ela vale por um tratado sobre o escravismo, a exclusão social, o racismo e e o “novo racismo”, que é a islamofobia. Partindo dos arrastões cariocas nas praias apartadas da Zona Sul, mas remontando às caravanas de escravos do tráfico negreiro, e tendo no seu centro uma alusão ao assassinato de um muçulmano em O Estrangeiro de Camus, a canção se caracteriza por um extraordinário poder de condensação. Explora-se a ambiguidade da toponímia carioca, vendo nas favelas (que substituiriam as senzalas) não apenas palco da letalidade das incursões policiais, mas autênticos núcleos de cultura negra. E a canção mostra uma clivagem no corpo do poema, uma quebra na sua estrutura, que corresponde à clivagem no corpo social deste país que tem o escravagismo no cerne de sua formação.
P – Nesse espaço e tempo: De ‘Desenho Mágico’ até este novo livro foram mais de 40 anos como pesquisadora da obra de Chico Buarque, o que coloca o cantor e compositor no patamar de um dos maiores da música brasileira? E, também, como, desde sua jornada na pós-graduação, é ter um corpus em que o artista ainda é vivo?
R – Como diz você, há mais de 40 anos eu estudo a obra de Chico Buarque, desde seus inícios com Pedro Pedreiro, A Banda, Sem Fantasia, Roda Viva – e outras precoces obras-primas. Somos exatamente da mesma geração, ou melhor, da mesma idade, e trata-se de um caso curioso, de uma crítica literária que acompanha um Autor à medida que ele vai produzindo, ao longo da vida. Por conta disso, já escrevi dois livros e uma série de artigos, publicados em revistas acadêmicas também do exterior, ou integrando song-books, como o organizado por Almir Chediak.
Nos meus textos sobre as canções de Chico eu não costumo tecer elogios ao Autor: mas creio que as análises mostram a genialidade de sua produção. Acho que, no seu caso, apontar já é valorizar. É essa a função da crítica: iluminar a obra, e evidenciar como, introjetada nela, estão as linhas de força da sociedade que a gerou.
Quanto a ter um corpus com um artista vivo, e da mesma geração, tem grandes vantagens. Cito um exemplo: quando fiz a análise de “As Caravanas”, antes de publicá-la eu a enviei para o Chico, que então me forneceu uma dica maravilhosa – que eu integrei ao texto, dando ao Autor, evidentemente, os créditos da informação. Trata-se de algo dizendo respeito aos versos “Sol, a culpa deve ser do sol / que bate na moleira, o sol”, em que o compositor revelou ter feito um jogo musical (de difícil apreensão mesmo para quem conhece música) que é o seguinte: a passagem da primeira para a segunda parte da canção se dá com a palavra “sol”, que “cai” na nota “sol”.
P – Das canções analisadas, qual a que te marcou, de forma pessoal e como pesquisadora? Poderia contar esse paradigma?
R – Como já disse em entrevistas e em textos, Chico Buarque é o autor de canções que passaram a integrar o patrimônio da sensibilidade brasileira. O Poeta é aquele que sabe nomear emoções, vivências, situações de alto tônus afetivo, que de outro modo ficariam inarticuladas. Diz o Ferreira Gullar que arte é “traduzir a vertigem em linguagem”. E é isso que o Chico faz: ele traduz para nós o que a gente sente e não consegue verbalizar.
Mas é dificílimo contar qual a canção que mais me marcou, nesse mar de obras-primas que é o seu cancioneiro, não dá para eleger uma única: há muitas que se equivalem em qualidade e no impacto que provocam. Durante algum tempo, eu respondi que era “Construção”, que é um espanto em termos de trabalho com a linguagem (ao mesmo tempo que mimetiza a sociedade em que foi gerada, com o corpo social fragmentado pela repressão dos Anos de Chumbo); depois, veio “O que será que será”, épica e utópica, em que se canta o Eros do povo. Mas eu poderia dizer também que é “Sobre todas as coisas”, uma fremente súplica de amor que convoca até o Criador, ou “Todo Sentimento” (em que se redimensiona o tempo, e emerge essa extraordinária formulação para o amor maduro e experimentado, o “tempo da delicadeza”). Mas Chico continua a produzir, e o nível de qualidade igualmente continua, e vem “As Caravanas”, um épico doloroso do Século XXI.
P – Tratar as letras de Chico Buarque como poemas é algo que transcende a trajetória do artista da canção para a literatura. Muitos críticos literários torcem o nariz para essa inclusão. Em seu novo livro, a professora mostrou coragem para colocar Chico nessa prateleira. Poderia contar como se deu nisso?
R – Eu diria que não há necessidade de “coragem” para colocar Chico como Poeta. Era assim que eu o considerava no livro publicado em 1982.E ele já foi reconhecido como tal pelo nosso maior crítico literário, Antonio Candido, (que aceitou orientar a minha tese de Doutorado na USP sobre a sua obra de cancionista, ou melhor, sobre as letras das suas canções abordadas enquanto poemas, e objeto de uma “leitura ideológica ); e pelo nosso maior poeta, Carlos Drummond de Andrade, que reconheceu que suas canções são “Poesia”.
Entre os artistas da MPB, Chico Buarque, conforme suas própria palavras, tende mais para a letra que para a melodia. Ele tem um tal comprometimento com a palavra, que faz com que suas letras suportem a abordagem que se faz a um poema. A palavra, ele a trata sensorialmente.
Dou alguns exemplos desse “poder de nomear” que só os poetas têm . Na canção “Eu te amo”, para figurar a complexa e contraditória soma de emoções que afloram num momento de separação de um homem e de uma mulher, separação flagrada em seu desgarramento e vertigem, dizem os versos:
Me conta agora como hei de partir
[…]
Como , se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu.
– em que os sentimentos polares de uma reação de casal, de atração e hostilidade – respectivamente, enlaçar/ pisar – são iconizados através dos metonímicos paletó, vestido e sapato. Todos, exemplos dessa capacidade de figurar sentimentos, de fornecer uma imagem visual, plástica, sensível, nomeando emoções.
P- Professora, para finalizar, diga-nos a estrofe mais bela de Chico Buarque?
R – Essa é outra questão complicada, cuja resposta varia. Há muitas “estrofes mais belas” de Chico Buarque. Eu gosto de citar um exemplo de mestria verbal, que se encontra-se na canção “Tira as mãos de mim”, da peça Calabar, em que Chico usa o trocadilho, usa um jogo verbal, em que, ao mesmo tempo que parece estar brincando com sons, está ampliando e condensando significados. Trata-se da fala da viúva da personagem Calabar, dirigindo-se a outro homem, e referindo-se à sua ligação apaixonada com o herói. Diz Bárbara:
Éramos nós
Estreitos nós
Enquanto tu
És laço frouxo
É este um trocadilho expressivo, criado por uma figura de linguagem chamada “paronomásia”, e que consiste na utilização de palavras que se assemelham no som, mas que têm sentidos diferentes. Aqui, o primeiro nós é pronome pessoal, enquanto o segundo é substantivo. Esse significado de “laços apertados” do segundo contamina, num certo sentido, o primeiro termo, revelando-lhe uma outra dimensão: eu + ele num vínculo intenso. Os dois nós semelhantes, ou melhor, idênticos no som (e na escrita) interagem no nível do significado, e dessa interação saem modificado, enriquecidos, interpenetrados. Isso, só os poetas fazem.
Adélia Bezerra de Menezes tem o dom poderoso de nos guiar por lugares que julgávamos conhecer, mas dos quais só víamos as partes mais externas.
Ela, na verdade, nos conduz por intrincados labirintos de significados onde se encontram cernes apenas sugeridos pelas pistas da “poesia espalhadas no chão”, como diz o poeta.
Adorei …vou imprimir.