Por: Katherine Funke*
Ao saber do enredo de A Casa dos Seis Tostões, a fotógrafa e artista visual Lucia Mindlin Loeb já escala o título como próxima leitura. Seu avô era ninguém menos que o bibliófilo José Mindlin; seu pai é arquiteto e lhe deu a primeira câmera fotográfica. “Fotografava pessoas, animais, casas, livros. Engraçado; fotografava livros. Abertos naquelas páginas de que eu mais gostava, como se não bastassem eles próprios, queria experimentar o fato de registrá-los”, ela conta no Manual de Uso que acompanha Mestrado, livro dividido em 8 volumes de diferentes tamanhos, que repetem a mesma fotografia em todas as páginas.
Nesta entrevista exclusiva para o blog da Ateliê, a artista conta detalhes de sua trajetória, desde o início até os principais desafios em mostras individuais e coletivas, revelando, por exemplo, que tem por livro de referência A Book of Books, de Abelardo Morell, editado em Nova York, em 2002.
Lucia, seu portfolio vem com o título “O Livro Através”. Ou seja: já deixa claro que a história da sua vida, sua trajetória, seu trabalho, é atravessada pelo “livro”. Pode nos contar um pouco de como isso tudo começou – e quando percebeu que seria sempre assim?
Lucia Mindlin Loeb – Esse título foi inspirado no título de uma exposição de livros, que foi no Metropolitan/NY, organizada por Adrian Wilson em setembro de 1985; The Book Thought Through. O catálogo é um livro fininho de capa vermelha com poucas imagens. Diz na introdução que os livros escolhidos expressam inesperada combinação de materiais e métodos. Não dá para saber direito como foi, nem sei se consegui entender a tradução do título direito, mas eu gosto da ideia de atravessar o livro de alguma maneira. Com um furo, com um pensamento, com uma serra, com um monte de livro pensando sobre o livro.
Pode se dizer que sim, que a minha vida sempre foi cercada por livros. Meu avô começou a formar uma biblioteca ainda menino, e não parou mais. Minha avó tinha uma oficina de restauro e encadernação em casa. Minha mãe se formou em arquitetura, mas sempre trabalhou como artista gráfica de livros. Eram coisas que eu gostava, e gostava de ver eles fazendo. Falo um pouco sobre isso no meu mestrado.
Das suas artes em torno do tema livro, qual foi a que trouxe mais prazer em realizar? Por quê?
LML: Não sei uma específica. Talvez a primeira vez que fiz um trabalho que tem furos e deslocamentos de impressão. Eu deixei na gráfica para furar, e tive que esperar não lembro quantos dias pra ver o resultado, pra ver se tinha dado certo. Abri ali mesmo e foi bem emocionante.
Você mesma serrou seu livro Abismo?
LML: Eu adoro colocar a mão na realização do projeto. Em todas as etapas que envolvem a produção. Muitas vezes levo para algum outro profissional fazer uma parte, ou mais de uma. Mas tenho uma oficina que me permite fazer bastante coisa (já consigo fazer os furos que tinha que levar pra fazer na gráfica, por exemplo), o que me dá mais agilidade para experimentar.
Não fui eu que serrei o Abismo. Depois de costurado ele ficou quase um cubo de 18 x 18 x 18 cm. Foi bem difícil encontrar alguém que tivesse essa serra e topasse fazer esse corte. A caixa de madeira serviu para prensar as páginas na hora do corte e também como gabarito para cortar uma série de 7 exemplares. Parecia muito simples; prensar e serrar. Mas o volume de folhas e a fibra do papel deixaram o livro mais duro que madeira. Cada exemplar ficou de um jeito, mais ou menos reto, mais ou menos queimado, alguns eu lixei depois, outros não. Mesmo ele tendo sido impresso em offset, teve um acabamento bem manual. Acabei gostando dessas variações.
Algumas de suas ideias parecem nascer em momentos de profunda abstração, ou meditação, em torno do sentido de existência do livro como objeto, como em Devaneio. É isso mesmo? Explique um pouco mais de como tem feito do livro um tema que marca sua assinatura de artista.
LML: As ideias aparecem em momentos variados. As vezes vêm de alguma palavra, de alguma coisa que eu li ou vi, de algum outro trabalho que eu esteja fazendo, de alguma coisa que eu esteja estudando. E quanto mais estiver produzindo, mais ideias vão surgindo. Às vezes de reflexões; e às vezes de ações. Devaneio foi assim: um devaneio sobre um caminhar de páginas, sobre um passeio qualquer (um tanto carioca), organizado em uma sequência, com um corpo. Que desperta uma ilusão de ótica, um devaneio do olhar.
Que referências e influências atuam no seu trabalho?
LML: Muitas referências influenciaram e influenciam meu trabalho, o tempo todo. Muitos fotógrafos, artistas e gráficos. Cinema e literatura. Tudo pode ser alimento. Mas tem um livro que me deixou maluca quando eu vi: A Book of Books, Abelardo Morell. São fotografias em preto e branco, muito bonitas, de livros, lombadas, detalhes da página, do corte do papel, da textura, do volume, e da forma. Aquilo me chamou atenção para a escultura que um livro, ou vários livros juntos, podem ser.
Como surgiu a ideia de Matriz, em que as mesmas fotos (uma para as páginas pares, outra para as ímpares) são repetidas do início ao fim, esvaecendo-se aos poucos?
LML: Matriz é um livro que vai revelando duas imagens, uma sempre na página da direita, outra sempre na da esquerda, que são meus avós fotografando. Nas primeiras páginas não se vê nada, mas aos poucos, com o folhear, as duas imagens vão surgindo, como a imagem latente em um papel fotográfico vai surgindo na bacia do revelador. Ele é um livro sobre isso. Sobre revelação, fotografia, matriz, imagem, memória e herança.
Vendo o panorama de suas realizações, há instalações mais conceituais e de efeito efêmero, como Memória Fotográfica, em que o livro é uma câmara escura capaz de captar as imagens efêmeras dos transeuntes, e objetos em que uma imagem se repete igual, página após página, e se torna tão sólida no livro que faz peso, faz volume, como em Maré e Tronco. Ambos os casos, livro e fotografia são temas em pauta. Além disso, o que essas fases aparentemente tão distintas têm em comum, como base conceitual?
LML: Elas têm em comum uma linguagem circular entre a forma, o assunto e o objeto. Uma troca de ideias, sentidos e materiais, que falam de si próprios. Uma metalinguagem.
Por que alguns de seus livros-objeto ou instalações não têm exatamente “capa”, no sentido mais habitual em um livro?
LML: Alguns dos meus livros não têm capa porque a capa não faz falta neles, porque quero que a costura apareça, ou porque a capa poderia atrapalhar o movimento das páginas.
Qual sua livraria favorita (de qualquer lugar do mundo) e por quê?
LML: Adoro livraria. Grande, pequena, de um assunto, de vários. Gosto da Livraria Cultura, da Livraria da Vila, da livraria da EDUSP, da Martins Fontes, de uma pequena que tem perto da minha casa, da banca do Tijuana, da Banca Tatuí, de todas essas feiras alternativas de livros, como a própria Tijuana, feira plana etc… Estive em Nova York na livraria da Printed Matter. Passei mais de três horas lá, tem muita coisa boa de publicações de artistas, livros experimentais, livros conceituais, livros objetos, livros sobre livros, flip books, revistas e etc. Muito legal!
Frequenta alguma biblioteca pública ou de acesso público, atualmente? Qual e o que indica nela para outros artistas ou amantes das artes do livro?
LML: Em Belo Horizonte tem a coleção de livros de Artista da UFMG. Organizada pelo Amir Brito Cadôr, ocupa duas salas do prédio da biblioteca central do campus, tem muita coisa bacana e está bem organizada. Também gosto da biblioteca da ECA/ USP, tem muitos livros sobre arte, livros sobre livros, livros obra, livros de artista, dissertações. Assim como a biblioteca do MAC/USP, no Ibirapuera. Também gosto de navegar na internet, tem muita coisa boa. O www.bacanasbooks.blogspot.com.br do Fabio Morais, por exemplo, ou a própria pesquisa no google usando palavras chaves.
Na internet, como fotos de perfil ou retratos de divulgação, você divulga uma foto interessante, feita pela sua filha, de você equilibrando um livro na cabeça… Como surgiu esta imagem, tão cheia de simbolismo? Foi pensada ou obra do acaso?
LML: Aquela foto (que abre esta entrevista) foi feita para algum evento que participei sobre livros de fotografia, e precisava de uma foto. Pedi pra Flora, minha filha, me fotografar com o Lines of May Hand, do Robert Frank, na minha cabeça, que é um livro que eu adoro. Não é uma coletânea de fotografias, é um livro com pensamento de livro. Na estrutura, na narrativa, na sequência, no ritmo.
Como mãe, gosta de ler para sua filha? (Qual a idade dela e que tipo de livro estão lendo agora?)
LML: Sempre gostei de ler para minha filha, mas agora ela tem quase 15 anos, já tem suas próprias leituras. No ano passado ela leu para a escola O Apanhador no Campo de Centeio. Me deu vontade de ler de novo, li e adorei. Quando ela era pequena alguns dos bestsellers eram: O Sapo Bocarrão, Chapeuzinho Amarelo, Carlota quer Ser Princesa, Um Garoto Chamado Rorbeto, De Passagem do Marcelo Cipis, que não tem texto, mas era ótimo pra gente inventar histórias, entre outros. É verdade que ainda hoje leio um pouquinho pra ela, algum conto, ou outra coisa qualquer.
E você, pessoalmente, gosta de ler o que, quando apenas deseja curtir o hábito de leitura?
LML: Gosto de ler. Acho que a leitura é além de uma fonte de prazer, uma espécie de meditação. Acabei de ler Zazie no Metrô do Raymond Queneau, antes estava lendo Murakami, e agora vou ler A Casa dos Seis Tostões, aproveitando a dica que veio com essa entrevista.
Conheça mais sobre a obra de Lucia Mindlin Loeb:
https://www.youtube.com/playlist?list=FL-1152QN7mEhfp1B2wfONPA
*Escritora, jornalista e mestranda em Literatura pela UFSC.