Renato Tardivo, Resenhas

Está Querendo Ser Meu Analista?

Renato Tardivo

SigmundFreud

 

Como além de escritor sou psicanalista com atuação clínica, escuto com alguma frequência comentários assim: “A clínica deve ser um rico material para a sua ficção…”; ou perguntas do tipo: “Você se inspira em seus pacientes para criar suas personagens?”. Vamos refletir a respeito.

Acredito na proximidade entre literatura e psicanálise. Quem já leu alguma coisa do Freud há de concordar que sua escrita não é alheia à literatura, tanto do ponto de vista do estilo quanto do conteúdo. Assim como outros psicanalistas, vislumbro maior parentesco da psicanálise com as artes e a literatura do que, por exemplo, com as ciências naturais. A questão foi tema desta coluna em outras ocasiões, como aqui. Isso não significa, no entanto, que um escritor de ficção se valha de sua clínica como material para a sua literatura. Explico.

Da mesma forma que há certo fetiche em torno da figura do psicanalista enquanto aquele que tudo sabe porque possui uma bola de cristal, há a crença, igualmente equivocada, segundo a qual o que distingue um trabalho terapêutico é o material trazido pelo paciente. Até pode haver eventos que o paciente conte apenas em análise, mas o que diferencia a situação terapêutica de uma conversa entre amigos confidentes, por exemplo, é sobretudo o tipo de escuta exercida pelo analista.

Dessa perspectiva, o analista é aquele que acompanha o paciente; é um interlocutor diferenciado que capta o que é dito, pensado e sentido para além do manifesto, da superfície, do cotidiano. O autor, no consultório, é o cliente; não o analista – este assume a condição de espectador que assiste à obra do outro e, assim, pode ajudá-lo a elaborar situações difíceis, sofrer menos, encontrar fontes de satisfação e dar conta de fruí-las etc.

Evidentemente, um escritor – como de resto todo ser humano – deve sempre ampliar suas possibilidades de contato com o mundo. Isso ocorre ao vivenciar obras de arte, ler, atualizar-se em relação à política e à cultura, viajar, aproveitar ao máximo as relações interpessoais etc., e, assim, conhecer-se melhor: olhar para fora é também olhar para dentro, e vice-versa. Nessa vertente, o ofício exercido na clínica compõe a visão de mundo do escritor-psicanalista como um de seus múltiplos elementos, e não como fonte de inspiração direta.

Mas há exceções. Um projeto literário pode se debruçar sobre o parentesco com a psicanálise e ser bem-sucedido. Neste espaço, resenhei dois belos livros escritos dessa perspectiva, um do ponto de vista da analista, outro do ponto de vista da analisanda. Esses livros, no entanto, possuem a especificidade de serem criados a partir das relações entre literatura e psicanálise; não podem ser tomados como regra.

De resto, a questão central talvez seja mesmo esta: o analista é espectador das histórias (que escuta); não o autor delas. Não há, portanto, motivo para considerar que os dilemas dos pacientes coloquem o escritor-psicanalista em vantagem em relação aos demais. E não se trata apenas, como talvez pensem alguns, de respeitar os limites éticos. Um psicanalista pode escrever sobre uma situação clínica, mesmo sem ser ficcionista, e ainda assim deve respeitar esses limites – não oferecendo elementos que permitam que o paciente seja identificado, por exemplo.

Por essas e outras, da próxima vez que me perguntarem se me inspiro em meus pacientes para criar minhas personagens, vou retrucar: “Por quê? Está querendo ser meu analista?”.

Coluna Resenhas - Renato Tardivo

Renato Tardivo é escritor e psicanalista. Mestre e doutorando em Psicologia Social (USP) e professor universitário, escreveu os livros de contos Do Avesso (Com-Arte) e Silente (7 Letras), e o ensaio Porvir que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê).

 

1 thoughts on “Está Querendo Ser Meu Analista?

  1. Lourdes Limeira disse:

    Podes crer! Eu compreendo! A mente humana é complexa demais, mas não há essa via doentia. O homem é um bicho perfeito. A não ser que sua máquina venha danificada, o DNA deteriorado; o processo linguístico humano não tem mistérios nenhum, há coerência em sua relação coletiva e social.

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