Em entrevista, Eugenia Sales Wagner fala da atualidade do pensamento da filósofa alemã de origem judaica
Por Renata de Albuquerque
Hannah Arendt acreditava que o ódio, “assentado em interesses particulares inconfessáveis”, tem uma grande força destrutiva. Na obra, que acaba de chegar à sua segunda edição, a pesquisadora analisa a teoria arendtiana tendo como base os cinco tipos de amor descritos pela filósofa alemã – o amor à sabedoria, o amor ao próximo, o amor à liberdade, o amor da vontade e o amor ao mundo.
Como conjugar temas como Filosofia, Ética e Política com liberdade e amor?
Eugenia Sales Wagner: Hannah Arendt: Ética & Política procura aproximar-se do que Arendt trataria em “O Julgar”, a última parte prevista, mas não escrita, de A Vida do Espírito. Essa aproximação, conquistada apenas ao final do livro, coincide com o desvendamento das relações entre Filosofia, Ética, Política, Liberdade e Amor no pensamento arendtiano, de modo que tratar com ligeireza dessas relações e conceitos só seria possível à custa de depauperá-los. Além disso, ao seguir pistas e enigmas deixados por Arendt, o percurso que revela tais relações guarda um certo mistério e suspense, necessários a captura e domínio desses conceitos, que devem ser preservados para o leitor. Posso adiantar, apenas, que Liberdade, Amor, Ética e Política no pensamento arendtiano são ideias intimamente associadas.
Como se dá a mudança do código de ética, de maneira que se verifica a origem do Mal (o totalitarismo)?
ESW: Essa questão é interessante, pois foi com ela que Arendt se viu às voltas desde os idos da ascensão do nazismo na Alemanha. Refletiu sobre esse tema em diferentes obras, tendo admitido que havia dado, inicialmente, uma importância excessiva ao papel da ideologia em Origens do Totalitarismo. Perguntava-se como, na Alemanha, durante a Segunda Guerra, parte das pessoas comuns aceitou de imediato e sem estranheza o código “matar” em detrimento do antigo “não matar”, ainda que nem todas elas tivessem cometido crimes. Depois de presenciar o julgamento de Eichmann, em Jerusalém, Arendt passou a acreditar que a irreflexão é a marca daqueles que, sem qualquer questionamento, deixam se guiar por meio de códigos e de regras de conduta e tornam-se, por isso, pouco confiáveis em momentos de crise, facilitando o estabelecimento e o fortalecimento de Regimes Totalitários. Esse fenômeno está na origem do conceito político por ela denominado “banalidade do mal”. Ainda que não seja a única condição para o cometimento do mal, a irreflexão e, assim, a incapacidade para julgar sem parâmetros em momentos de crise é, segundo H. Arendt, cada vez mais presente em nossas sociedades. Parece significativo o número de indivíduos que, uma vez dedicados exclusivamente às atividades voltadas para a sobrevivência – ao consumo e às ocupações cotidianas –, não costuma cultivar o hábito de pensar os acontecimentos políticos, de modo que a irreflexão pode ser percebida em pessoas pertencentes a diferentes condições sociais, culturais e educacionais.
Como compreender e julgar podem ser postos em prática em um panorama de policiamento ideológico (como foi o momento dos governos totalitários do século XX)?
ESW: Arendt crê que aqueles que têm o hábito de refletir levando em conta os outros, isto é, as diferentes perspectivas a partir das quais um acontecimento pode ser visto, aprimoram a compreensão e a capacidade para julgar. Um julgamento firmado exclusivamente em interesses privados atesta que aquele que julga não leva em consideração outras formas de ver o mundo, pois, ainda que pense é destituído de um “pensamento alargado”, o pensamento fundado na comunidade. É possível, portanto, compreender e julgar em momentos de crise ou em um panorama de policiamento ideológico, como você mencionou; o que é impossível, no último caso, é manifestar essa compreensão e esse julgamento publicamente sem se tornar um mártir.
Quais os desafios de levar a filosofia a um público amplo, como defende Arendt?
ESW: Vários são os desafios e podemos destacar, inicialmente, a importância que Arendt concedeu ao pensador capaz de permanecer conectado com os problemas de seu tempo, evitando o solipsismo que condiciona o aparecimento de ideias obscuras e incomunicáveis. Outro desafio é o de aceitar o convite que essa pensadora faz para nos juntarmos a ela, a Sócrates, a Kant e a Jaspers, na exploração das sendas abertas pelo pensamento crítico, o pensamento modesto e não doutrinário, despojado da vaidade e da arrogância de considerar a si próprio como definitivo a respeito de um determinado tema; o pensamento crítico procura popularizar-se e abrir-se ao exame livre de muitos. Neste livro há ainda o desafio de criar um espaço de compreensão entre Arendt, a autora e o leitor ou leitora que possua maior ou menor intimidade com o pensamento arendtiano, um espaço em que clareza e complexidade não concorram entre si, mas encontrem-se conectados.
O que o entendimento dos cinco tipos de amor pode agregar à compreensão do momento atual?
ESW: O amor à sabedoria, o amor ao próximo, o amor à liberdade, o amor da vontade e o amor ao mundo, que conformam, respectivamente, cada um dos cinco capítulos do livro, foram estruturados e elaborados com a intenção de que cumprissem dois movimentos concomitantes: o de destruir preconceitos e o de introduzir conceitos. Refletir sobre essas formas de amor permitiu destituí-las de falsas conotações, bem como revelá-las como formas de poder. Cada uma das formas de amor tem o seu lugar próprio no mundo; nem todas têm vocação política, ainda que façam morada no coração dos seres humanos.
Qual a atualidade da obra de H. Arendt para o mundo de hoje? Por que discuti-la?
ESW: As ideias arendtianas guardam uma atualidade impressionante, até mesmo porque H. Arendt (1909-1975) não está tão distante de nós; o tempo dela é ainda, sob vários aspectos, o nosso tempo. A importância de repensar e discutir tais ideias encontra-se, principalmente, na força do pensamento de Arendt, que se dedicou a refletir sobre a importância política do livre pensar, da comunicabilidade daquilo que é pensado, da vontade enraizada na comunidade e do julgar sem parâmetros em momentos de crise, para dar apenas alguns exemplos.
Qual a implicação de discutir Ética e Política sob o signo do Amor nos dias de hoje, em que há um discurso de ódio que contamina a esfera política na sociedade brasileira, enfraquecendo a argumentação e a discussão saudável e substituindo-as por insultos, muitas vezes infundados?
ESW: O preocupante para Arendt é que o ódio, geralmente assentado em interesses particulares inconfessáveis, conta com aqueles que não têm o hábito da reflexão e nenhum compromisso com a comunidade para criar uma força de grande poder destrutivo. O ódio não apenas avilta, mas destrói o espaço público-político, que no sentido arendtiano é um espaço de compreensão compartilhado por cidadãos dispostos não apenas a falar, mas também a ouvir; cidadãos que trazem no espírito o senso de comunidade.
O ódio e a violência – que nem sempre se manifesta como violência física – não podem instaurar um novo espaço comum após a destruição que provocam, pois deixam suas marcas nas entranhas daquilo que criam. É nesse sentido mesmo que Arendt convoca todos aqueles que têm o hábito de pensar para aparecerem em momentos de crise, ainda que seja no papel de espectador, para julgar os acontecimentos, recolocando a verdade política em seu lugar, pois para ela a verdade política existe: é a verdade fatual, que o desejo de dominação falsifica. Para Arendt “a liberdade de opinião é uma farsa se não garantir a informação fatual”. Naturalmente isso se torna um empreendimento nada fácil quando o poder da informação encontra-se concentrado em poucas mãos. Creio que para Arendt a maior corrupção é a corrupção dos fatos.
Por favor, gostaria te contactar a Profa. Eugenia Sales Wagner para participar de um evento. Seria possível me passar o contato de e-mail dela? Grata desde já.
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