Renato Tardivo*
Eu, Daniel Blake, filme dirigido por Ken Loach e vencedor da Palma de Ouro de 2016, em Cannes, é excelente e necessário.
A trama gira em torno das tentativas (frustradas) de Blake, que é carpinteiro, de conseguir o seguro desemprego do governo inglês a que tem direito por ter sofrido um enfarto.
O espectador logo empatiza com o protagonista, um senhor bem intencionado, que tenta apenas adquirir o seu direito, mas é sucessivamente ludibriado pela burocracia, seja no telefone (o filme começa apenas com o código sonoro, em um daqueles diálogos cômicos não fossem trágicos), seja pessoalmente, subjugado por funcionários que são muito eficientes ao usar a regra para punir, mas não para atender aos direitos dos cidadãos.
As tentativas de Blake não encontram vazão. É como se ele estivesse à iminência de outro enfarto: a pressão só aumenta. A fotografia com baixa saturação contribui para essa atmosfera – o Sol nunca se põe.
Há um momento, contudo, em que o protagonista, ao presenciar a humilhação sofrida por uma mulher acompanhada de dois filhos pequenos, se rebela. Ele grita em favor dela, e eles são brutalmente expulsos do estabelecimento.
Ocorre que, a partir daí, há um contraponto para as negativas recebidas por Daniel. Ele passa a ajudar a moça e seus dois filhos, uma menina e um menino, recém-chegados à cidade e sem nenhum dinheiro. Blake, que não recebe o mínimo, se doa para o outro.
Trata-se de um cinema de denúncia. O cinema de Loach é moderno, não há dúvida. Há sequências, no entanto, que lembram o cinema clássico – a câmera estática captando a chegada da personagem que, ao passar, é filmada em contracampo, por exemplo. Esse recurso talvez sirva para universalizar o filme, que em certa medida lembra um documentário – quem nunca se estressou ao telefone ou pessoalmente, vítima da burocracia?
O tema central é a identidade – colocado desde o título redundante. No clímax do filme, após tantas negativas, Daniel picha seu nome, exatamente como no título: “I Daniel Blake”. É muito bonita essa sequência, pois, após sentir sua existência anulada, a personagem, além de ir à forra, se liberta, renasce.
As trocas com a mulher e as crianças – que em momento decisivo também o ajudam –, bem como com seu vizinho, caminham em direção oposta à forma como Blake é tratado pelos funcionários do governo. Nessa medida, o filme aborda a identidade em sua complexidade, mostrando que ela se constrói no contato com a alteridade, com o mundo e por meio da (cada vez mais rara) iniciativa de se doar ao próximo.
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*Renato Tardivo é psicanalista e escritor. Doutor em Psicologia Social da Arte (USP). Autor, entre outros, do ensaio Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê/Fapesp) e do livro de poemas Girassol Voltado Para a Terra (Ateliê).