Embora eu não goste da palavra “coincidência” e tenha de começar este texto com ela (logo na primeira linha!), assim pode ser chamado o curioso fato de que quando meu dedo indicador pressionou a primeira tecla, um trovão sacudiu as folhas metálicas da janela. Um novo jogo de boliche acontecendo nas pistas úmidas das nuvens, um novo pigarro – desta vez da cadeira onde me sento, ela reclamando de escoliose num espaldar nada lisonjeiro –, um novo pássaro que ora canta três notas iguais, ora quatro – e vou imaginando que ele dá um ligeiro salto em cada uma delas, ou que gira o corpo roliço num discreto rodopio para secar as penas borrifadas de chuva. Mas desta vez o silêncio é mais palpável, mais viscoso, e penso que se eu pudesse enxergá-lo da minha janela, veria brilhantes pingos de sombra prateada explodindo no ar como se rompidos por cada partícula de som mais próxima. É uma imagem que me agrada, e que apesar de romântica, abstrata, não poderia ser diferente quando a brisa que entra também faz barulho, empurrando a cortina e produzindo o som de um sussurro dentro de uma concha. Um sussurro com perfume de eucalipto, terra quente, lavandas e magnólias – tão doces que a boca saliva, que os cantos da língua repuxam nervosos de vontade, como se morder as cremosas pétalas amarelas fosse provar o sabor de um fim de tarde.
Escritores precisam de concentração para escrever, do contrário suas obras seriam impossíveis, inexistentes. É preciso uma fatia generosa de solidão e silêncio para ser escritor; cada som, por mais ínfimo e inocente que seja, rasgando essa frágil película que envolve o escritor e todas as suas imagens transformadas em palavras, penetrando seu mundo privado, é um pequeno ato de violência. Cada som invasor é uma fração de um todo que é caos, esta vida que pulsa de todos os lados e da qual não conseguimos nos desvencilhar enquanto pulsamos junto. Fazemos parte do caos, da invasão que perturba o processo criativo, e por isso ele também faz parte de nós – sobretudo quando sua imposição inexorável se transforma na temática indesejada. É um truque da vida, do destino, se você preferir, escrever sobre o que se tentou evitar para conseguir escrever. Então a arte literária se mostra bem-humorada, perspicaz.
Virginia Woolf, na segunda metade de sua vida, tinha o trabalho constantemente interrompido por visitas indesejadas, dúvidas das cozinheiras, e na borda da Segunda Guerra Mundial, aviões sobrevoavam sua casa e bombas a alguns metros do seu escritório chacoalhavam as janelas fazendo-a perder a pesca de alguma palavra – lá se vai ela, livre do anzol! Entre versos amargos e duros, Sylvia Plath, ao contrário de Virginia, era interrompida pelo choro estridente dos filhos pequenos, e assim também vivia, ainda que de maneira mais organizada, Enid Blyton, famosa escritora de livros infantis que batia em sua máquina cerca 10 mil palavras todos os dias. Logo o barulho incessante foi substituído pela eficiência das babás, e a criação voltou a ser silenciosa (a despeito das teclas metálicas), concentrada, imperturbável.
Agora ouço o grasnar de um tucano, uma abelha ardendo no gramado ainda úmido de orvalho, um vento macio nas copas umbrosas das araucárias. Penso que escrever é um exercício de contemplação: contemplar um mundo externo e outro interno, e transformá-los num terceiro, a obra literária. Para isso, o silêncio, a solidão e toda ausência de ecos – inclusive os próprios, aqueles que perturbam os pensamentos, preocupações vagas que de nada ajudam, como se aquela conta que vencia ontem foi paga ou se o gás na cozinha foi desligado – são necessários. Franz Kafka disse em carta a um amigo que seu lugar ideal para escrever seria nas profundezas de uma caverna, munido de uma lamparina e tudo o que é necessário para escrever. É assim que me vejo escrevendo, distante do mundo, resguardado de seus acontecimentos, indiferente à queda da Bolsa ou à desapropriação de um bairro ocupado ilegalmente.
A escrita será sempre interferida porque
(Precisei ir ao banheiro. Volto quando o mundo silenciar.)