Renato Tardivo
Interpretações – Crítica Literária e Psicanálise reúne ensaios instigantes sobre o complexo parentesco entre essas duas áreas. Com efeito, as reflexões deste livro não incorrem nos dois problemas mais frequentes quando psicanálise e literatura são relacionadas: 1) a recusa prévia da possibilidade de diálogo, sobretudo por parte dos literatos, que podem ver na psicanálise apenas uma terapêutica ou um fazer normativo; 2) a aplicação direta de conceitos da psicanálise à literatura, de modo que o analista encontre no texto aquilo que ele próprio escondeu. Ao contrário, abordando diversas perspectivas dessa relação, os ensaios são divididos em duas seções: “O Ato Interpretativo”, que inclui reflexões sobre os dois fazeres, tendo a interpretação como mediadora, e “Faces da Interpretação”, que apresenta análises cuidadosas de obras literárias. Não sendo possível falar de todos, a seguir comentarei alguns desses textos.
Abre o conjunto o ensaio de Alfredo Bosi: “Psicanálise e Crítica Literária – Proximidade e Distância”. Recorrendo a clássicos da literatura e importantes pensadores da cultura, Bosi coteja possibilidades e limites implicados na relação entre as duas áreas. Entre os limites, talvez o mais significativo apontado pelo crítico seja o seguinte: “A Psicanálise conhece para curar, é uma ciência com vistas a uma terapêutica; a crítica literária, ao contrário, ao que eu saiba, nunca curou ninguém do vício de escrever, que continua compulsivo e impune”.
No ensaio seguinte, Adélia Bezerra de Menezes empreende um mergulho na “práxis da interpretação” presente nos dois campos e, como se continuasse o texto de Bosi, encaminha a reflexão do primeiro capítulo. Escreve a autora: “No paralelo que vim montando entre Interpretação literária e Interpretação psicanalítica, sempre ressaltando as semelhanças, há que se fazer uma distinção; uma diferença entre a práxis do crítico literário e a do psicanalista. É que, no caso específico da Psicanálise, há uma intenção terapêutica no uso da palavra”. E logo depois: “Essa eficácia terapêutica, no entanto, no encontro analítico, talvez se deva menos a uma ‘vontade interpretativa’ do que a um movimento de verbalizar, a um nomear, a uma passagem à palavra […] Assim, nem seria propriamente a interpretação que conta, mas mais propriamente a possibilidade que se oferece da presença de um outro atento, e que – para usarmos os termos de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas – ‘ouve com devoção’”. Ou seja, vislumbra-se aqui uma psicanálise cujo fim não é a cura pelo conhecimento, mas a vivência de um método que, em seu fazer específico, guarda semelhanças com a literatura.
Em “Uma Visita aos Sonhos na Arte: Grete Stern e Henri Matisse”, João Frayze-Pereira propõe no âmbito da “psicanálise implicada”, aquela que “respeita a singularidade da obra e constrói interpretação para ela, derivando-a dela, na justa medida dela”, duas aproximações: primeiro com uma série de fotomontagens da fotógrafa alemã Grete Stern, depois com uma mostra de obras de Matisse. Com efeito, as interpretações propostas pelo autor são precisas em sua poeticidade, e os sonhos visitados, na arte, comunicam-se com os sonhos para a psicanálise.
Talvez o ensaio mais denso do livro seja “Escrita e Ficção em Psicanálise”, de Joel Birman. Nele, o psicanalista empreende um resgate da história da psicanálise, retoma aspectos importantes do pensamento de Freud, pontua as obras em que as questões aparecem e, em um texto esclarecedor, fundamenta a tese da “presença inequívoca da dimensão ficcional do psiquismo”. Com efeito, o deslocamento da teoria da sedução para a teoria do fantasma empreendido pela psicanálise, quer dizer, a distinção proposta por Freud entre realidade psíquica e realidade material, traz como decorrência a dimensão ficcional do psiquismo: cuja ordem é sexual, é atravessado pelo desejo e contém os fantasmas – mediadores entre o sujeito e o acontecimento real. Dessa perspectiva, problematizam-se todas as modalidades de registro, não apenas em psicanálise ou literatura, mas na história, que seria, portanto, também ela atravessada pela ficção.
A seção dedicada às análises apresenta ensaios saborosos que acrescentam sentidos ao leitor que já tomou contato com as obras e funcionam como convite à leitura daquelas que o leitor ainda não conhece. A temática do espelho, cara tanto à literatura quanto à psicanálise, o Unheimlich, definido por Freud como “o estranho que é familiar”, o Édipo, enfim, esses e outros temas relevantes comparecem nas interpretações lançadas às obras de, entre outros, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Chico Buarque.
Por fim, vale dizer que o livro – organizado pelas também autoras Cleusa Rios P. Passos e Yudith Rosembaum – resulta interessante para o estudioso da área, mas, conquanto os ensaios não sejam herméticos, servirá ao leitor que, no mínimo, viva a literatura e se inquiete com a complexidade da mente humana.
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Renato Tardivo é escritor e psicanalista. Mestre e doutorando em Psicologia Social (USP) e professor universitário, escreveu os livros de contos Do Avesso (Com-Arte) e Silente (7 Letras), e o ensaio Porvir que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê).