Como entendemos o mundo? Esta pergunta, sobre a interpretação que as pessoas têm do universo que as rodeia, sempre intrigou a todos. Neste texto de três partes, o Professor Antônio Suárez Abreu aborda o tema. Na primeira parte, fala sobre como nossas experiências interferem nesse entendimento.
Antônio Suárez Abreu*
“Só entendemos aquilo que já existe em nós.”Paulo Bonfim
- O passado e o sentido das coisas
Com base no senso comum, as pessoas pensam que aquilo que veem no mundo preexiste ao entendimento. Ledo engano. Tudo aquilo que vemos e sentimos é resultado da maneira como nossas mentes são formatadas, em parte de modo inato e, em parte, por meio do nosso passado, que é construído desde que nascemos e interagimos com o mundo e as pessoas ao nosso redor.
As crianças vão aprendendo aos poucos a criar um estoque de passado em suas mentes. Na primeira vez que uma delas vai ao supermercado com a mãe e deseja comer um chocolate, retira-o simplesmente da prateleira e começa a desembrulhá-lo. Imediatamente, a mãe diz que não é assim, tira o chocolate de sua mãos e o coloca no carrinho de compras. Após pagá-lo no caixa, entrega-o a criança. Na próxima vez, ela, já de posse dessa informação em seu passado, apenas põe o chocolate no carrinho, esperando que passe pelo caixa para, somente então, desembrulhá-lo e comê-lo. Quando adultos, ao pararmos na frente de um elevador, sabemos que temos de apertar um botão para chamá-lo. Sabemos, também, que ao entrar dentro dele, temos de procurar um display com os botões dos diversos andares do edifício e apertar o botão correspondente ao andar que pretendemos atingir. Fazemos isso porque, em nosso passado, já entramos em vários elevadores.
Uma dos mais importantes eventos da história humana foi a descoberta da escrita, na antiga Suméria, 3.200 a. C. Isso permitiu que, por meio da leitura, pudéssemos nos apropriar do passado de outras pessoas e aumentar exponencialmente nossa capacidade de pensar, imaginar e criar. Isaac Newton, quando perguntado sobre como havia conseguido ter ideias tão brilhantes sobre a gravidade e o Universo, disse que tinha conseguido ver tão longe, porque estava sobre os ombros de gigantes, referindo-se, metaforicamente, aos outros brilhantes astrônomos que o tinham antecedido, como Kepler e Copérnico. Um outro importante evento da história humana foi a descoberta da impressão por meio de tipos móveis, feita por Gutenberg, na Alemanha em 1442, o que permitiu democratizar a escrita em escala mundial.
Um adulto que tivesse todo o seu passado retirado da cabeça passaria a ser apenas um autômato, uma espécie de vegetal que, em vez de estar plantado no solo, poderia caminhar, mas sem rumo algum. É exatamente isso que acontece com uma pessoa fortemente atacada por Alzheimer. Por não ter mais passado, não se lembra do ontem, do mês anterior, de sua infância, nem mesmo daquilo que aconteceu há pouco. Depois de apresentada a uma outra pessoa, basta que fique longe dela por instantes para que não mais a reconheça e tenha de ser novamente apresentada, o que será, é claro, uma tarefa inglória, um trabalho de Sísifo. [1] Como dizem Hofstadter &Sander: “Nenhum pensamento pode ser formado a não ser que seja informado pelo passado, ou, mais precisamente, nós pensamos somente graças a analogias que ligam nosso presente ao nosso passado.” [2] Dizem eles também que “as emoções desempenham um importante papel […], permitindo a recuperação de memórias antigas por meio da analogia.” [3]
[1]Na Mitologia Grega, Sísifo, rei da Tessália, era mestre em malícia e em ofender os deuses. Quando morreu, foi condenado por Zeus, por toda a eternidade, a rolar uma grande pedra de mármore até o cume de uma montanha; mas, quando ela estava alcançando o topo, rolava de volta até o ponto de partida, por meio de um uma força irresistível. Isso fazia com que Sísifo tivesse de levá-la novamente ao alto da montanha de onde ela rolava de novo ao ponto de partida.
[2]Douglas Hofstadter & Emmanuel Sander.Surfaces and essences: analogy as the fuel and fire of thinking, 2013. p. 20. No original: No thought can be formed that isn’t informed by the past, or, more precisely, we think only thanks to analogies that link our present to our past.
[3]Idem, ibidem. No original: Emotions play important roles inside conceptual skeletons, allowing the retrieval of ancient memories by analogy. (p. 168)
*Tem mestrado, doutorado e livre-docência pela USP, pós-doutorado pela UNICAMP, é professor titular de língua portuguesa da UNESP, membro da Academia Campinense de Letras e autor, entre outros, dos livros: Gramática Mínima para Domínio da Língua Padrão (Ateliê), O Design da Escrita (Ateliê) e Texto e gramática: uma integração funcional para a leitura e escrita (Melhoramentos).