Retornando ao catálogo da Ateliê Editorial, em sua terceira edição, a clássica obra Um lance dados, de Stéphane Mallarmé. A edição bilíngue conta com a introdução, organização e tradução de Álvaro Faleiros. A capa é da Casa Rex. O livro já está à venda no site da Ateliê Editorial. Acesse aqui.
Leia abaixo um trecho do texto do prefácio da segunda edição, intitulado Não Houve Naufrágio, escrito por Sérgio Medeiros, presente na obra.
O romance Finnegans Wake, de James Joyce, começa com letra minúscula: “riverrun, past Eve and Adam’s…”, e termina sem ponto final: “A way a lone a last a loved a long the”. Ou seja, o fim, que não é conclusivo, remete ao início, e tudo recomeça, como um rio que corresse em círculo. O romance de Joyce é de 1939. O Poema (escrito com inicial maiúscula, para destacar talvez sua singularidade: não é igual a nenhum outro) de Mallarmé, cujo título me parece ser Un coup de dés jamais n’abolira le hasard (admito, porém, que o título poderia ser apenas Poème, e “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” seu subtítulo) começa e termina com a mesma locução, “um lance de dados”, o que mostra que essa obra, publicada em sua versão final em 1914, após a morte do autor, possui, como Finnegans Wake, uma estrutura circular. Os dois textos mais radicais da literatura ocidental, o de 1914 e o de 1939, continuam insuperáveis. Obras absolutamente desconcertantes, para as quais os termos poesia e romance parecerão sempre inadequados, estão disponíveis, felizmente, em português do Brasil, para todos os leitores, graças à ousadia da Ateliê Editorial, casa de Joyce e de Mallarmé.
A presente tradução, assinada por Álvaro Faleiros, é uma reedição, mas diferente da primeira, porque volta igual e diferente, e parece afirmar que o naufrágio, evocado no poema (o subtítulo se parte e mergulha nas páginas do Poema, que é feito de detritos), não ocorreu. “Nada terá tido lugar senão o lugar”, ou seja, o movimento cíclico anula tudo (o universo de Mallarmé é sem Deus, o qual foi substituído pelo Acaso, que acolhe a contradição e o paradoxo), e a poesia recomeça, mas esse recomeço nos introduz em outro texto, somos outro leitor, o tradutor é outro tradutor, e o Mestre volta a lançar os dados (ninguém pode afirmar que ele não os lançou jamais ou que, tendo hesitado, não possa vir a lançá-los mais tarde, no próximo círculo).
Quentin Meillassoux, num estudo curioso e inventivo intitulado Le Nombre et la sirene: Un déchiffrage du Coup de dés de Mallarmé, afirma que o Poema radicaliza aparentemente a entreprise do verso livre. Porém, ao contrário de defender o verso livre, ele propõe, segundo Meillassoux, uma nova forma, a qual não é apenas a defesa de um gênero novo, mas, paradoxalmente, a defesa indireta do verso antigo e da rima.
Tudo passa e tudo retorna (o verso livre, o alexandrino, a rima) entre o primeiro “lance de dados” e o último, que na verdade é o primeiro de um novo ciclo.
Eis a beleza desta obra singular, cuja radicalidade continua a desafiar os leitores e os tradutores. Em seus respectivos ensaios, incluídos neste importante volume, Álvaro Faleiros e Marcos Siscar, especialistas em literatura francesa, nos ensinam a recomeçar a leitura, sempre.
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Stéphane Mallarmé, cujo verdadeiro nome era Étienne Mallarmé, (1842-1898) foi poeta e crítico literário francês. Autor de uma obra poética ambiciosa e difícil, Mallarmé promoveu uma renovação da poesia na segunda metade do século XIX, e sua influência ainda é sentida nos poetas contemporâneos. Mallarmé começou a publicar seus poemas na revista O Parnaso Contemporâneo (Le Parnasse contemporain), editada em Paris na década de 1860. Anos depois, Mallarmé conheceria os poetas Rimbaud e Paul Verlaine. Mallarmé se utilizava dos símbolos para expressar a verdade. Sua literatura se caracteriza pelo pensamento refinado e repleto de alusões que pode resultar em um texto às vezes obscuro.
Álvaro Faleiros é professor livre-docente de Literatura Francesa da USP e tem publicado artigos sobre tradução poética em revistas na França, no Canadá e no Brasil. É também poeta, compositor e tradutor. Pela Ateliê Editorial já publicou: Traduzir o Poema (2012); Caligramas, de Guillaume Apollinaire (Ateliê/UnB, 2007); Kalevala: Primeiro Poema (2009), com José Bizerril; Meio Mundo (poemas, 2007).