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Leia um trecho do texto ‘Traduzir Mallarmé é o Lance de Dados’, de Marcos Siscar, presente na obra ‘Um lance dados’

Retornando ao catálogo da Ateliê Editorial, em sua terceira edição, a clássica obra Um lance dados, de Stéphane Mallarmé. A edição bilíngue conta com a introdução, organização e tradução de Álvaro Faleiros. A capa é da Casa Rex. O livro já está à venda no site da Ateliê Editorial. Acesse aqui.

Leia abaixo um trecho do texto Traduzir Mallarmé é o Lance de Dados, de Marcos Siscar, presente na obra.

Álvaro Faleiros tem razão em não renunciar à tradução que Haroldo de Campos fez do poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard (1974). Não apenas porque se vale dela (e de seus comentários) produtivamente, mas também porque o mérito de um trabalho de tradução não se mede pelo simples poder de negação da leitura anterior. O que está em jogo é antes a capacidade que teria de colocar-se como herdeiro, de certo modo, de reatualizar a tradição, buscando novas condições de “permanência” em uma época interpretada como de esgotamento, inclusive da lógica da “ruptura” (segundo a palavra de Octavio Paz, usada pelo tradutor) que animou a primeira tradução do poema.

Com relação a essa posição discursiva, Faleiros anota, em sua apresentação, que “não se trata mais de fazer da tradução uma arma na batalha contra um pretenso conservadorismo ou parnasianismo reinante, mas, sobretudo, fazer da tradução um instrumento de reflexão sobre o que está em jogo no ato de traduzir e no texto traduzido”. E, de fato, ainda que a reflexão sobre o traduzir não estivesse ausente do trabalho de Haroldo de Campos, é notório e conhecido o caráter militante de sua atividade, na perspectiva dos valores de “invenção” defendidos pela poesia concreta, antes que não considerasse terminado o ciclo “utópico” das vanguardas, em artigo de 1984.

No texto de Un coup de dés assinado por Haroldo, as opções do trabalho de tradução, documentadas por um grande número de notas explicativas, encontram justificativa em uma ideia de praxis poética formulada em “Por uma Poética Sincrônica” (Campos, 1969); ou já no artigo “Da Tradução como Criação e como Crítica” (Campos, 1967), com o auxílio de princípios teóricos formalistas e estruturalistas. Ali, a história literária é subordinada a um ponto de vista contemporâneo sobre o valor poético, gesto que produz e legitima ostensivamente a sinonímia entre o sentido da tradição e a “estratégia” poética e política do presente. O resultado dessa visão tradutória baseada na criatividade dos recursos expressivos e nas soluções poeticamente “válidas” em português dá destaque, naquele caso, aos problemas de macroestrutura visual e sintática, e aos problemas léxicos e morfológicos ligados à valorização do significante (entendido como aspecto material e mensurável da linguagem).

Independentemente da historicidade de qualquer ponto de vista sobre o passado, o estabelecimento, como modelo de visão histórica, dessa equivalência entre o sentido da tradição e a estratégia do presente sempre foi o ponto mais problemático e polêmico da atividade de tradução dos poetas concretistas. Não há como evitar, em tradução, que esse tipo de perspectiva em relação ao passado acabe estimulando e ao mesmo tempo legitimando, não apenas a criatividade, mas também as excentricidades e cacoetes pessoais do tradutor, independentemente do interesse que tenham. Em Haroldo, o uso de palavras raras e inusuais, o gosto pelo preciosismo lexical e por uma certa estranheza sintática, presentes em praticamente toda sua prática poética, indicam um esforço contínuo de elevar o grau de impacto do caráter digamos “não comunicativo” da poesia. A preocupação é legítima, em especial no caso de Mallarmé, mas a partir de uma interpretação específica e, a meu ver, datada (e por isso mesmo histórica, relevante à sua maneira) daquilo que seria o sentido de sua recusa da comunicação. Com efeito, é preciso lembrar que a recusa da comunicação mallarmeana não tem, necessariamente, relação com os valores da vanguarda, ou seja: não tem relação com a antecipação da poesia do futuro, nem com a ideia de uma autonomia positiva da obra poética. A simples menção ao prefácio de Un coup de dés, além de raras frases descontextualizadas de sua prosa crítica (corpus principal do entendimento de Mallarmé pelos concretos, ao lado dos poemas mais complexos sintaticamente) não é suficiente para a compreensão de seu projeto poético. Tal tarefa, deixada em suspenso pela urgência da leitura “criativa”, é pressuposta pela nova tradução de Faleiros.

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Stéphane Mallarmé, cujo verdadeiro nome era Étienne Mallarmé, (1842-1898) foi poeta e crítico literário francês. Autor de uma obra poética ambiciosa e difícil, Mallarmé promoveu uma renovação da poesia na segunda metade do século XIX, e sua influência ainda é sentida nos poetas contemporâneos. Mallarmé começou a publicar seus poemas na revista O Parnaso Contemporâneo (Le Parnasse contemporain), editada em Paris na década de 1860. Anos depois, Mallarmé conheceria os poetas Rimbaud e Paul Verlaine. Mallarmé se utilizava dos símbolos para expressar a verdade. Sua literatura se caracteriza pelo pensamento refinado e repleto de alusões que pode resultar em um texto às vezes obscuro. 

Álvaro Faleiros é professor livre-docente de Literatura Francesa da USP e tem publicado artigos sobre tradução poética em revistas na França, no Canadá e no Brasil. É também poeta, compositor e tradutor. Pela Ateliê Editorial já publicou: Traduzir o Poema (2012); Caligramas, de Guillaume Apollinaire (Ateliê/UnB, 2007); Kalevala: Primeiro Poema (2009), com José Bizerril; Meio Mundo (poemas, 2007).

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