Sugestões de leitura para o Cancioneiro, de Petrarca (terceira parte)
O Cancioneiro, de Petrarca, é um livro do século XIV. Apesar de ser considerado o principal modelo de poesia lírica amorosa no Ocidente, a distância que nos separa deste clássico – que a Ateliê lançou com a tradução de José Clemente Pozenato e ilustrações de Enio Squeff em 2015 – muita vezes dificulta sua leitura.
Foi pensando nisso que nesta semana damos continuidade à publicação do texto Sugestões para um leitor de hoje que queira ler o “Cancioneiro” de Petrarca, escrito pelo poeta, crítico de arte e ensaísta brasileiro Armindo Trevisan.
Quarta Sugestão.
Abra, enfim, o Cancioneiro. Sem prevenção, nem preconceitos. “Prepare seu coração” – dizia Geraldo Vandré – para as coisas que Petrarca lhe vai dizer. A primeira delas já no primeiro soneto da coletânea. O poeta avisa-lhe que vai suspirar muito:
Vós que escutais em rima esparsa o coro
dos suspiros com que eu meu ser nutria,
naquele erro em que jovem me perdia,
quando outro eu era do que sou, e coro:
no vário estilo em que razôo e choro
entre esperanças vãs, vã agonia,
onde haja quem do amor provou a via,
se não o seu perdão, piedade imploro. (p. 39).
Amigo, você está percebendo que não é fácil penetrar o universo de Petrarca! Ele não é um poeta de aeroporto, de leitura amena e divertida, embora o título: Cancioneiro insinue tal ilusão. Petrarca é um poeta culto. Console-se com Camões, que se inspirou em Petrarca e, até parafraseou alguns de seus sonetos. Não estranhe não serem frequentes no Cancioneiro referências a episódios exteriores. Tudo ali é relacionado com uma viagem ao fundo da noite, isto é, ao fundo do coração. Ao longo desse percurso, o poeta limita-se a abrir uma janela aqui – sobre sua autobiografia – outra acolá – sobre a história da época – como no soneto III no qual diz:
Era o dia em que o sol escurecia
pesaroso da morte do Senhor,
quando sem dar por mim, sem nem supor,
teu belo olhar, Senhora, me prendia.
O poeta reporta-se ao olhar do primeiro encontro com Laura, sua musa até ao fim da vida dela, em 1348, e da vida do próprio poeta. Você poderá perguntar-me: “Quem era essa moça?” Pergunta complexa, difícil de ser satisfeita. O poeta tinha encontrado essa jovem numa igreja de Avignon – onde o Papa residia então – numa Sexta-Feira Santa, 06 de abril de 1326. Até hoje a crítica não sabe quem era essa criatura fascinante! Sabe-se apenas algo a seu respeito: que era loura, e tinha olhos pretos, e que morreu vítima de uma terrível epidemia de peste que assolou a Europa pouco depois. Dirá você: “Não deixou o poeta nada que a pudesse identificar?” Respondo: quase nada. Não obstante, sabemos que o poeta teve uma ligação com uma avinhonesa, da qual resultou um filho natural, Giovanni, nascido em 1337, e uma filha, de nome Francisca, nascida em 1343, cinco antes da morte da Musa. Sugiro-lhe não se interessar muito em saber mais. No presente caso, isso seria quase “voyeurismo”. O poeta não quis que ninguém a visse, mas aceitou, envaidecido, que seus leitores a imaginassem. Trata-se, portanto, de um ser de imaginação. Ele a descreveu sem jamais cansar-se, fornecendo-nos os predicados físicos que lhe atribuía, sempre predicados sensoriais acondicionados num papel celofane espiritualizante. Elogia na sua musa a beleza de seu nome (“o doce som ouvido”), de seus cabelos louros, sobretudo de seus olhos, tão límpidos e fulgurantes que os comparou ao sol:
Assim Aquela, sol mais que mulher,
ao me lançar os raios do olhar,
cria de amor palavras e pensar.(p. 47).
Em determinados versos remove um pouco a cortina:
O que eu mais desejava foi roubado;
do véu sou tão refém,
que em fogo e gelo morto me mantém
quando a luz dos teus olhos me escondeu.(p. 49).
Persuada-se de uma realidade: o erotismo de Petrarca, por mais ubíquo que seja, é sempre subliminal. Nunca o expõe à vista do leitor. As pistas que o poeta dá são evasivas, e tendem a transformar-se em alusões. O mais a que ele chega é identificá-la com Dafne que Apolo perseguia, mas que ao tocá-la, viu-a transformar-se em árvore:
Pudesse eu tê-la ao despontar do sol,
e ninguém nos visse senão estrelas
uma só noite, e nunca viesse a aurora;
e não se transformasse em verde selva
a fugir-me dos braços, como o dia
em que Apolo a seguia aqui na terra. (p. 61).
Sem dúvida, o leitor pode forçar as coisas, e ir mais adiante, até porque Petrarca se permite sugestões tangíveis como a seguinte:
E persegui tão longe o meu desejo
que um dia, caçando, como eu fazia,
pasmei: aquela fera bela e crua
em uma fonte, nua
estava , quando o sol mais forte ardia.
Eu, que essa vista nunca mais apago,
fiquei a olhá-la, e teve ela vergonha;
para então se vingar ou por disfarce
com a mão jogou água em minha face. (p. 69).
Qualquer leitor percebe que essa espécie de jogos de amor escondem algo mais sério. Não vá adiante, caro amigo! Certifique-se que já estamos na página 71 do Cancioneiro, e que o poeta, em momento algum, deixou de celebrar sua mulher amada, nem deixará, ou seja, uma mulher em carne e osso, terrivelmente corporal, porém metamorfoseada numa surpreendente “mulher-fantasma”, numa mulher inapreensível. Diferentemente da Beatriz de Dante, a Laura de Petrarca não é jamais convertida em símbolo. Continua mulher, continua fêmea, porém com a labilidade de um peixe que resvala das mãos do pescador…