Sugestões de leitura para o Cancioneiro, de Petrarca (quarta parte)
O Cancioneiro, de Petrarca, é um livro do século XIV. Apesar de ser considerado o principal modelo de poesia lírica amorosa no Ocidente, a distância que nos separa deste clássico – que a Ateliê lançou com a tradução de José Clemente Pozenato e ilustrações de Enio Squeff em 2015 – muita vezes dificulta sua leitura.
Foi pensando nisso que nesta semana damos continuidade à publicação do texto Sugestões para um leitor de hoje que queira ler o “Cancioneiro” de Petrarca, escrito pelo poeta, crítico de arte e ensaísta brasileiro Armindo Trevisan.
Quinta Sugestão
Esqueça o aspecto “amante” de Petrarca. Ele é, além do mais, um ciumento incomparável. Reserva Laura, a física, para si, comprazendo-se em exibir a outra Laura, a meta-física, a que está além do corpo, a imaginária, para o leitor. Que este a imagine quanto quiser – e puder! O poeta não se importa de desenhá-la ou pintá-la verbalmente:
Verdes panos, ou de rubro tingidos
não vestiram té agora,
nem trança de ouro mulher envolveu
tão bela como essa que me espolia
do juízo, e do rumo da liberdade
consigo me arrasta, pois não sustenho
nem jugo menos grave. (p. 81).
Apegue-se, portanto, ao Poeta! Ele é mais interessante que a própria mulher que celebra, tanto assim que poucos retratos “imaginários” dela ficaram, e no entanto, são inúmeras, e sempre atuais, as edições do Cancioneiro. Repare como Petrarca possui finura:
pela esperança que é de amor a filha,
e em tua acerba vida te conserva,
da intempérie livra esta alfombra;
veremos depois juntos, maravilha,
sentar-se a mulher nossa sobre a erva
e fazer dos braços sua própria sombra.(p. 89).
De tão suspiroso que o poeta é, corre o risco de saturar-nos! Mas como supor saturação quando o ouvimos confessar com humildade:
Eu sou daqueles que o choro renova;
e é bom que sem engano
as lágrimas que emano
mostrem nos olhos a minha alma inteira:
como é minha bandeira
falar dos olhos dela
(não há coisa mais bela
ou algo que me toque tão lá dentro),
corro muito e reentro
lá onde a dor mais fundo me enregela,
e com o coração punem-se as luzes
que na estrada de Amor me foram cruzes. (p., 95).
Não esqueça, leitor, que Petrarca está sempre consciente de que seu corpo é uma sarça ardente! Às vezes – e isso é uma heresia que me permito – chego a pensar que ele transferia para Laura seus impulsos sexuais, tendo em seus braços outra mulher. Esta, porém, super-tangível. A outra seria a que ele verdadeiramente abraçava? Não sejamos insolentes. A tanto não me arrisco. Leiamos apenas o que ele escreve:
Amor, tu que consegues por encanto
Uma só alma em dois corpos habitar,
o que faz nela ser tão peculiar
o querer menos, quando a quero tanto? (p. 109).
Acrescentemos, um tanto abusivamente, que talvez Petrarca estivesse a evocar a frase do Mestre: “Serão dois numa só carne”!
Reitero-lhe, leitor: o poeta, na sua condição de amante, poderá “decepcionar” o público de hoje, que poderia exigir-lhe mais atenção ao tato. Na sua condição, porém, de poeta Petrarca nunca decepciona. O que vemos sobrenadar às suas imagens e metáforas são tábuas de naufrágio, mediante as quais o poeta sempre se salva. É isso que o imortalizou, mesmo quando se queixa de que sua amada Laura não dava a mínima atenção à sua poesia. Mulheres amadas sempre existiram, e existirão, mas poetas capazes de tornar uma única mulher inesquecível são raros. Eis por que o próprio Petrarca comenta:
Oh dor, por que devo ir
fora do rumo a magoar a quem amo?
Deixa que eu vá aonde o prazer me acalanta.
Já de vós não reclamo,
olhos serenos sobre o mortal fluir
nem dela que de tal modo me encanta.
(…)
mas cada vez que para mim olhais
de vós mesmos ficais sabendo mais. (p. 143).
Leitor, procure descobrir a poesia desse gênio que amou a natureza tanto quanto a mulher, e por vezes, a despiu imaginativamente com tanta volúpia que muitos, ainda hoje, a despeito de nossa decantada permissividade, não seriam capazes de fazê-lo:
E digo que há um instante,
qual eu não a tinha visto até agora,
se me despiu; e isso deixou gelado
o coração na hora.
E o será sempre, indo nós de braço dado.
Mesmo com todo o medo e tremor meu,
já que ela me dera tanta firmeza,
a abracei com fineza,
para mais aprender dos olhos seus:
e ela que removera já o seu véu,
me disse: Amigo, agora tens certeza
de toda a minha beleza;
pede quanto convier aos anos teus.
Senhora, eu disse, há muito tempo meus
Afetos pus em vós, todo inflamado.
Por isso, neste estado
Querer ou não querer está suposto.-
Com voz então de timbre mavioso
respondeu, e com um rosto
que o meu temor tornou esperançoso:
raro do mundo foi na grande turba
quem ouvindo falar do meu valor
não sentisse fervor
mesmo que de somente uma centelha:
e a adversária minha que o bem perturba
tudo apaga: lá vive-se ao sabor
e reina outro senhor
que uma vida tranqüila aconselha. (p.207).
Através de seu Cancioneiro, Petrarca permanece atual, necessário a um mundo que pensa vivenciar o amor à revelia da imaginação. O poeta dá-nos lições concretas de imaginação corporal. Um mundo – como o nosso – que aprendeu a desnudar as mulheres, ganharia muito aprendendo com Petrarca a desnudá-las na presença de suas almas.
Dizem os estudiosos que os elementos naturais, os lamentos dos pássaros, a brisa do verão, o murmúrio das águas são – “homólogos dos suspiros do poeta, do seu rio de lágrimas, e das palavras de Laura. Essa interação do sentimento e da natureza não se limita ao registro da tristeza. O soneto 192 repousa, ao contrário, na relação natureza/alegria, do mesmo modo que na quarta estrofe da canção: Chiare fresche e dolci acque” se descreve uma chuva de flores amorosas”[1]:
Dos belos ramos caía
tão doce na memória,
uma chuva de flor em seu regaço;
e sentada eu a via,
humilde em tanta glória,
coberta já da auréola qual um laço.
uma flor no seu braço
outra na loura trança,
eram ouro e opala
que estavam a adorná-la;
uma pousava em terra, uma outra em dança
no ar, vagamente flor,
parecia dizer: – Aqui reina Amor.
Em tais momentos, o Poeta do Cancioneiro deixa de ser renascentista, fundador do lirismo ocidental, e se torna simplesmente um Poeta Vivo, tão vivo como a primeira criança que haja, por acaso, nascido na primeira hora deste dia!
[1] Christian Bec: Fundamentos de Literatura Italiana.Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1984. p..86).