Alessandro Silva | Jornal da Unicamp | 29 de julho a 4 de agosto de 2013
Artista italiano usou a matemática e o desenho para entender o funcionamento da “máquina” humana
Viaje cinco séculos no tempo. Esqueça a internet, a televisão, o cinema e a fotografia. Houve uma época em que o homem teve que recorrer ao desenho para retratar sua viagem de descoberta rumo ao interior do corpo humano. Os portugueses nem haviam chegado ao Brasil quando Leonardo Da Vinci (1452-1519) começou um dos mais impressionantes levantamentos de anatomia para entender o funcionamento de órgãos, do esqueleto, dos músculos e tendões. Esta é a história pouco conhecida do artista-anatomista italiano – sim, além de pintor, escultor, músico, cientista, arquiteto, engenheiro e inventor, ele também atuou na medicina.
Ao longo de 15 anos (de 1498 a 1513), Leonardo desenhou órgãos e elementos dos sistemas anatomofuncionais do corpo humano em um estudo que começou pela leitura das obras de autores da medicina pré-renascentista, como Galeno de Pérgamo (129-200), Mondino dei Luzzi (1270-1326) e Avicena (980-1037). Ele também participou de dissecações do corpo humano e de diversos animais. Porém, jamais terminou e publicou a obra que, segundo pesquisadores, poderia ter revolucionado a medicina mais de 20 anos antes que o belga Andreas Vesalius, considerado o “Pai da Anatomia”, publicasse seu livro “De Humani Corporis Fabrica”, em 1543, obra que marca a fase inicial dos estudos modernos sobre anatomia.
Para entender as implicações e a importância dos estudos anatômicos realizados durante o Renascimento, basta imaginar que, por quase mil anos, questões religiosas e culturais impediram o homem de explorar o próprio corpo e de entender o funcionamento da máquina humana – as dissecações para a observação direta do corpo humano não eram permitidas nem adotadas pelas escolas de medicina medievais. É a história desse período e o contato com as imagens de mais de 1200 desenhos anatômicos produzidos pelo próprio Leonardo da Vinci que tornam interessante o livro “Os Cadernos Anatômicos de Leonardo da Vinci” (Leonardo on the Human Body), publicado pelas editoras Unicamp/Ateliê.
“Com seus estudos anatômicos, Leonardo da Vinci ultrapassou os conhecimentos dos artistas de sua época, pois, ao observar o interior do corpo humano, viu de perto as características dos seus músculos e dos seus órgãos vitais, e mais ainda, tentou e conseguiu entender e dar explicações lógicas sobre os seus movimentos, sobre as suas ações e sobre as suas funções”, explica o cirurgião do coração Pedro Carlos Piantino Lemos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que traduziu o livro do inglês para o português, em parceria com a tradutora Maria Cristina Vilhena Carnevale.
Leonardo é tido como uma exceção entre os artistas que se propuseram a explorar a anatomia humana. Partiu dele, como destaca o professor da USP, a primeira descrição, observada em uma dissecação, de uma aterosclerose – o entupimento de uma artéria em decorrência do acúmulo de gordura.
A publicação em português dos Cadernos Anatômicos de Leonardo é resultado de dez anos de trabalho dos tradutores brasileiros. São 520 páginas e informações que explicam detalhadamente o lado anatomista do gênio italiano. Como acréscimos, Lemos criou marcações que ajudam o leitor a identificar o desenho ao comentário a ele referente. Os tradutores também inseriram termos médicos atuais que ajudam na localização das coisas descritas por Leonardo – na época em que ele aventurou-se pelo corpo humano, boa parte do organismo humano ainda não tinha nome. Inovador
Inovador
No Renascimento, artistas como Leonardo aproximaram-se de médicos-anatomistas para retratar melhor a forma humana em pinturas e esculturas. Eles foram chamados de “artistas-anatomistas”, segundo Charles O’Malley (Universidade de Stanford) e J.B. Saunders (Universidade da Califórnia), que organizaram e traduziram, do italiano para o inglês, os textos de anatomia de Leonardo da Vinci. “Embora fosse fundamentalmente um artista, [Leonardo] considerava a anatomia como sendo algo mais que simples coadjuvante da arte. Essa atitude o levou a prosseguir com seus estudos, de tal maneira que seus conhecimentos anatômicos ultrapassaram aqueles que seriam suficientes para desempenhar sua arte”, afirmam no livro.
De fato, os desenhos desse estudo de Leornardo são anotações, um roteiro de pontos que seriam ainda detalhados e esclarecidos para a publicação de um tratado de anatomia. Os detalhes, os cortes e os ângulos das figuras impressionam pelo realismo e respeito pela proporcionalidade que existe no corpo humano. A influência da engenharia e da matemática é visível: roldanas, formas geométricas e engrenagens estão presentes nas gravuras, ao lado de estruturas ósseas, de conjuntos de tendões e músculos, indícios de que ele recorreu a cálculos para interpretar os movimentos e a funcionalidade dos elementos anatômicos que observou.
De sua experiência em outras áreas, Leonardo trouxe diversas inovações para o estudo da anatomia, dentre elas a utilização da injeção de cera derretida nos ventrículos do cérebro de um cadáver para facilitar a sua dissecação.
Para a época, o desenho de Leonardo era um avanço surpreendente diante das caricatas e simples ilustrações encontradas, por exemplo, na obra de Mondino dei Luzzi, denominada “Anothomia”. Havia um menosprezo do valor pedagógico da imagem nos estudos medievais de anatomia. Uma imagem do Mondino mostra, ao fundo, um professor lendo um texto de anatomia, escrito em latim e sem figuras, enquanto seus alunos, à sua frente, auxiliados por um tutor, dissecam um corpo humano. No Renascimento, essa dinâmica de aprendizado foi rompida e os estudos de anatomia nunca mais foram os mesmos, pois o próprio professor passou a mostrar diretamente no cadáver os aspectos dos elementos anatômicos.
“O livro [de Leonardo] é uma contribuição fundamental para a compreensão do desenho como meio de conhecimento, uma ferramenta de construção do pensamento visual”, avalia a professora Lygia Arcuri Eluf, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. “Leonardo da Vinci é um grande precursor de um período bastante interessante da história do mundo ocidental, conhecido no campo das artes como ‘maneirismo’, no qual parece que todas as possibilidades de um mundo novo se abrem para os artistas.”
Com a morte do artista, discípulo herda desenhos
Apesar do brilhantismo da obra de anatomia de Leonardo da Vinci, o trabalho dele desapareceu durante vários séculos até ser encontrado e publicado. Após a morte do artista-anatomista, em 1519, todos os desenhos e textos que ele produziu foram herdados por seu discípulo Francesco Melzi, que os guardou até 1570. A partir daí, os caminhos percorridos pelas folhas dos diversos cadernos de Leonardo, particularmente as folhas dos seus estudos de anatomia, são pouco conhecidos. Em 1690, conforme pesquisas dos tradutores americanos, há evidências de que elas já estavam na Biblioteca Real de Windsor, na Inglaterra, como parte da coleção real.
O primeiro esforço para levar os desenhos e os textos anatômicos para o conhecimento público ocorreu em 1898, com a publicação de alguns deles por Theodore Sabachnikoff, voltada mais para a curiosidade dos leitores e para o fato de ser uma novidade e menos para a importância do estudo realizado. Apenas no século passado, houve um trabalho adequado para organizar os desenhos e traduzir os textos, o que resultou na edição do livro de O’Malley e Saunders – o original da tradução portuguesa publicada pela Editora da Unicamp e pela Ateliê Editora.
No Renascimento, desenho mudou e ajudou a ciência
Até o final da Idade Média, o desenho apresentava figuras que deveriam ser adoradas, a exemplo de outras culturas do passado, mas o Renascimento alterou esse caráter e permitiu que os artistas representassem o mundo, segundo a professora Lygia Arcuri Eluf, do IA.
Além disso, da era medieval para o Renascimento, os artistas tiveram à sua disposição a descoberta de materiais que ajudaram a modernizar o desenho até então realizado, tais como pedras para litogravuras de diferentes gradações, além da criação de ferramentas de escrita, como penas de metais. “Sem esses materiais, o desenho não aconteceria”, explica a professora, especialista em desenhos e gravuras.
Para ela, o papel do desenho nesse período era o de registrar como os artistas entendiam e viam o mundo por meio de investigação de toda a natureza. Era como se o homem, após um período de estagnação durante a Idade Média, iniciasse um processo de redescoberta do mundo, a exemplo das múltiplas áreas de interesse de Leonardo da Vinci, que se envolveu com pintura, escultura, música, ciência, arquitetura, engenharia e anatomia.
Nesse período, o valor pedagógico do desenho ganhou prestígio, principalmente com o surgimento da imprensa e do livro, segundo o médico Pedro Carlos Piantino Lemos, tradutor da obra de Leonardo da Vinci para o português. Até então, os médicos recusavam o uso de qualquer coisa que pudesse distrair a atenção durante a leitura dos textos. “Na Idade Média, não se levava em conta a figura, apenas o texto puro”, afirma o professor da Universidade de São Paulo (USP).