Renato Tardivo*
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, romance de Lima Barreto, autor homenageado na Flip deste ano, foi publicado pela primeira vez em 1919. Levou algumas décadas, contudo, para que a obra de Lima fosse amplamente distribuída. Triste Fim de Policarpo Quaresma, originalmente publicado em 1915, talvez seja seu romance mais célebre; com efeito, Policarpo é uma das personagens mais importantes da literatura brasileira. No romance que se ocupa da biografia de Gonzaga, no entanto, encontramos um Lima Barreto que equilibra com excelência sensibilidade e crítica. A obra acaba de receber uma caprichada edição, com inúmeras notas explicativas, um minucioso ensaio de Marcos Scheffel, além de ilustrações e fotografias do Rio de Janeiro do início do século.
A história é narrada por Augusto Machado, biógrafo de Gonzaga. De saída, coloca-se uma questão extremamente atual, da qual tem se ocupado grande parte da literatura contemporânea: as pontes entre realidade e ficção. A linguagem documental é trabalhada no âmbito da ficção. O romance não segue um enredo linear, nem trabalha os conflitos do ponto de vista da narrativa clássica. Machado relata encontros com seu biografado, cuja morte anuncia no início do livro, dando voz a ele em diálogos, cartas, anotações deixadas. E é assim que tomamos contato com as inquietudes de Gonzaga diante daquilo que vê ao transitar pela cidade. E como são atuais suas reflexões acerca da hipocrisia que rege a civilização.
Conquanto flua desde o início, trata-se de um romance filosófico. Algumas passagens, como a que veremos, são memoráveis. Escreve Machado, referindo-se a anotações que Gonzaga lhe deixou:
“Não compreendi imediatamente a significação dessa fantasia; mas, referindo-a a este e aquele aspecto de sua vida, entendi bem que ele queria dizer que o Acaso, mais do que outro qualquer Deus, é capaz de perturbar imprevistamente os mais sábios planos que tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e da nossa vontade. E o Acaso não tem predileções…”
Em que se considerem essa e outras passagens, é interessante constatar certa afinidade temática entre a obra de Sigmund Freud, criador da psicanálise, e a literatura do início do século passado: o olhar para além do que se mostra superficialmente, a vida que surge da morte e a morte de que é feita a vida, as tensões entre civilização e desejo, realidade e ficção, o estranho e o familiar… Esta talvez seja uma interessante chave de leitura para esse romance de Lima Barreto – uma biografia que começa em morte e termina em vida e na qual o biografado erra pelas ruas da metrópole com um olhar negativado.
Não há vida que resista às perturbações do Acaso. Mas, paradoxalmente, são essas perturbações que conferem identidade à personagem, à cidade, ao país. Ora, não seria justamente após a morte que, pelos olhos de Augusto Machado, se constrói a identidade de M. J. Gonzaga de Sá?
**Renato Tardivo é psicanalista e escritor. Doutor em Psicologia Social da Arte (USP). Autor, entre outros, do ensaio Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê/Fapesp) e do livro de poemas Girassol Voltado Para a Terra (Ateliê).