Escritas do Desejo – Crítica Literária e Psicanálise (Ateliê Editorial) é o tipo de livro indispensável àqueles que se interessam pela relação – fecunda e ambígua – entre literatura e psicanálise. Mas será útil também ao leitor que, interessado em cultura e ciências humanas, se dispuser a viajar, isto é, a lançar-se em busca do novo.
Onze são os ensaios que compõem o volume – organizado por Cleusa Rios P. Passos e Yudith Rosembaum. Além das organizadoras, assinam os capítulos: Adélia Bezerra de Menezes, Leda Tenório da Motta, Noemi Moritz Kon, Camila Salles Gonçalves, Philippe Willemart, Renato Mezan, Leyla Perrone-Moisés, Maria Rita Kehl e Márcia Marques de Morais. Como se vê, autores consagrados.
Conforme escrevem as organizadoras na Breve Apresentação, a maioria dos ensaios “compôs um colóquio sobre „Crítica Literária e Psicanálise‟, organizado em 2008, pelos departamentos de Teoria Literária e Literatura Brasileira da USP”. Talvez por isso, em que se pese a densidade das reflexões, a leitura seja fluida e agradável.
O conjunto, além da Breve Apresentação, é dividido em três partes: A Experiência e o Verbo, A Palavra Encobridora, A Emergência da Palavra. A primeira parte traz ensaios que mapeiam as articulações entre literatura e psicanálise enquanto uma problemática relevante. Vejamos, a propósito, o capítulo de abertura, “A Palavra Poética: Experiência Formante”, de Adélia Bezerra de Menezes. Ao finalizar a reflexão com a análise de poemas de Ferreira Gullar (“Traduzir-se”) e de Adélia Prado (“Arte”), Adélia Bezerra de Menezes é, também ela, inspiradora: “Essa coisa visceral, em que lateja um ritmo, está na imagem da tripa, mas também na do coração: o que o caracteriza, quando pensamos nele, é a sua presença acústica, antes de maisnada: o tum, tum; tum, tum: o pulsar”. Com efeito, tanto a literatura quanto a psicanálise lidam com o ritmo da vida – na e pela palavra.
Noemi Moritz Kon, ainda na primeira parte, habita a “íntima” e “conflituosa” relação entre “a psicanálise e a arte – e a literatura em particular”. Sua reflexão explora desde as ambiguidades de Freud com a figura do artista e a própria arte, até as aproximações e limites entre a psicanálise e a literatura, sobretudo a fantástica, por meio, dentre outros, de Merleau-Ponty, Barthes e Foucault. Escreve Kon: “Penso que, apesar das inclinações de Freud e de seu temor quanto a uma cumplicidade com o trabalho criador do artista, compreendido como anverso do trabalho do cientista que ele pretende prioritariamente ser, o que liga o ato psicanalítico ao ato artístico é justamente a capacidade criadora”.
Se a Parte I procura mapear um campo mesmo de diálogo entre literatura e psicanálise, a Parte II, A Palavra Encobridora, aborda problemas de pesquisa, ou seja, as reflexões são norteadas por uma questão. Sugestivamente, o ensaio que abre a seção, de Camila Salles Gonçalves, dialoga o tempo todo com o texto de Freud “Lembranças Encobridoras” (1899), em companhia, dentre outros, de Theodor Adorno, Isaias Melsohn e Fabio Herrmann. Vale citar o arremate de Gonçalves: “[…] há uma fabricação inconsciente dessa recordação bucólica, que encobre outros sentidos sob sua aparente banalidade. Acompanha um tipo de verdade que a literatura freudiana compõe, ainda que se esmere em demonstrar que o texto está além do princípio do prazer do próprio texto” (grifo meu). Isto é, à ânsia de elevar a psicanálise a um, digamos assim, estatuto de ciência, o pai da psicanálise cai (felizmente) na própria armadilha. Desencobre-se em Freud, a partir de Freud, uma verdade mais afeita à literatura do que à ciência.
A Parte III, A Emergência da Palavra, apresenta análises de poéticas, conjunto de obras de um autor, ou um conto literário, sempre na interface da literatura com a psicanálise. No ensaio “Bovarismo e Modernidade”, Maria Rita Kehl vale-se da expressão fundada a partir de Emma, célebre personagem do romance Madame Bovary, de Flaubert, para refletir o bovarismo nacional presente em Machado de Assis e a permanência desses traços no contexto
contemporâneo. Mas não nos apressemos. O que seria “bovarismo”? Leiamos com a psicanalista: “O termo já se incorporou ao senso comum, mas vale lembrar que é uma expressão cunhada pelo psiquiatra francês Jules de Gaultier em 1902 […] a fim de designar „todas as formas de ilusão do eu e insatisfação, desde a fantasia de ser um outro até a crença no livre-arbítrio‟”. Mas, como nos lembra Kehl, a possibilidade de tornar-se um outro, nas sociedades capitalistas, está inscrita no laço social. O problema está colocado, portanto. E, se “tornar-se um outro implica reconhecer o caráter simbólico da dívida para com os antepassados, de modo a não se deixar capturar pelas armadilhas da culpa”, o problema transforma-se em “uma das figuras mais expressivas da subjetividade moderna”, podendo ser encaminhado, também, pela psicanálise.
E muito mais poderia ser dito a respeito destes e dos demais ensaios de Escritas do Desejo – Crítica Literária e Psicanálise. Se, como diz Lacan a partir de Hegel, “o desejo é o desejo do outro”, a leitura dessas “escritas” irá, com efeito, nutrir o leitor desejoso por compartilhamento – um dos alimentos de que mais necessitamos.