Por: Renata de Albuquerque
Transpor obras literárias para o cinema é um assunto polêmico. As “adaptações” nem sempre são bem recebidas e muitos leitores apaixonados não economizam críticas ao que veem na tela. Só por isso, já é necessária uma dose de coragem para enfrentar um projeto como esse. No caso do diretor Luiz Fernando Carvalho, a coragem e a sensibilidade se refletem nas escolhas de transpor para as telas obras que não parecem “óbvias” para essa finalidade. De Machado de Assis (Capitu) a Ariano Suassuna (A Pedra do Reino), passando por Eça de Queirós (Os Maias), Carvalho levou à TV aberta uma estética apurada e inovadora, incomum nesse meio. No cinema (Lavoura Arcaica), sua arte se mostra aos espectadores como uma epifania estética que nos provoca a sair do “modo automático”. “A cada dia, se faz mais e mais necessário aos artistas se prepararem para resistir e reagir à hegemonia das regras de um padrão único, reivindicando modos próprios de ler e reler a literatura e o mundo”, acredita.
Para Carvalho, a literatura é a origem que forma, com o cinema, um binômio fundamental. “Estamos falando sobre imaginação, o ato de imaginar, que é um direito civilizatório”, diz, aludindo a Antonio Candido em “O Direito à Literatura” (Vários Escritos). Neste texto, Candido defende que ninguém pode viver sem literatura. “Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação”, afirma o crítico. É bom lembrar que, para Candido, esse direito a poder estar em contato com (ou mesmo a criar) uma narrativa artística e ficcional não tem a ver com “alta cultura”: a fabulação pode ter como fonte tanto a TV quanto o romance, assim como qualquer outra expressão artística.
Em sua trajetória como diretor de teledramaturgia, Carvalho dedica-se a oferecer ao espectador novas possibilidades narrativas a cada realização, onde reafirma a importância de dar voz ao que destoa, sublinhando o valor das diferenças para tentar desfazer a ideia de uma linguagem absoluta. “Além de excludente, o mercado é uma máquina de domesticação que insiste em conter arestas e identidades, transformando a multiplicidade em um ser único e obediente, consumidor silencioso daquilo que lhe é apresentado e pronto. Mas não! Somos todos muito singulares. Dar voz a essas diferenças, alimentar sonhos e desejos, ir além da visão burguesa do ‘macho-branco sempre no comando’, será a nossa salvação como artistas, mas, principalmente, como civilização.” – provoca o diretor, que, em sua próxima obra, se debruça sobre uma literatura que expõe a falência do modelo patriarcal burguês através de uma mulher em crise após sua ruptura amorosa.
Clarice
Carvalho finaliza o filme “A Paixão Segundo G.H.”, transcriação para as telas do romance de Clarice Lispector lançado em 1964. Se a pandemia não o tivesse impedido, o filme – que tem Maria Fernanda Cândido no papel de G.H. – teria sido lançado no ano em que se comemorou o centenário da escritora. Na obra, G.H. é uma escultora bem sucedida da burguesia carioca que, após demitir a empregada, decide arrumar ela mesma a casa começando pela “calda” do apartamento: o quarto de empregada. Lá, se depara com o inseto repugnante: uma barata. Refém de seus fantasmas moralizantes, G.H. é arrastada para dentro de um universo desconhecido e que a leva a descobertas metafísicas após confrontar-se consigo mesma.
Na nota de abertura, Clarice Lispector escreve que, apesar de ser “um livro qualquer”, ficaria feliz se ele fosse lido apenas por leitores de “alma já formada”: que sabem que a aproximação de algo se dá de maneira penosa. Para Luiz Fernando Carvalho, A Paixão Segundo G.H. traça um diálogo intenso com seu filme anterior, Lavoura Arcaica (Raduan Nassar). Tanto um quanto o outro são experiências estéticas elaboradas a partir da literatura, negando radicalmente a intermediação de um roteiro adaptado.
Talvez por isso, além do filme A Paixão Segundo G.H., o diretor vai lançar, como aconteceu em Lavoura Arcaica, um livro sobre o filme. Ainda que não sejam livros de natureza semelhante, ambos podem ser entendidos como um desdobramento do diálogo entre literatura e cinema, que reunirá ensaios de especialistas a respeito da obra cinematográfica e seu cruzamento com o romance de Clarice Lispector. Entre os nomes confirmados para a edição, que será publicada pela Ateliê Editorial, estão, entre outros, a professora de literatura e biógrafa Nádia Battella Gotlib, o professor de cinema Ismail Xavier, a escritora Marilene Felinto e o psicanalista Renato Tardivo. A organização é da autora e pesquisadora Ilana Feldman. No ano em que se comemoram os vinte anos da estreia do filme Lavoura Arcaica e da exibição de Os Maias (que estará disponível no Globoplay), Luiz Fernando Carvalho continua transpondo para as telas obras que nos libertam e ao mesmo tempo instigam espectadores de “alma já formada”.