Renata de Albuquerque
Luiz Tatit empunha o violão. Seja como artista solo, seja como integrante do grupo Rumo, seu sorriso leve alegra o público. Luiz Tatit empunha o giz. É professor titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e um dos mais importantes pesquisadores brasileiros quando o assunto é semiótica. Não por acaso, entre seus parceiros musicais estão Arrigo Barnabé e José Miguel Wisnik. Por trás da aparente simplicidade, há uma sofisticação intelectual admirável, fruto de muitos e profundos estudos.
O mais recente exemplo disso é Estimar Canções – Estimativas Íntimas na Formação do Sentido, em que ele se propõe a “calcular” canções. A seguir, Tatit fala de seu mais novo livro em uma entrevista na qual refuta a ideia de que letras de canções são poemas:
De onde surgiu a ideia desse projeto?
Luiz Tatit: O projeto que resultou nesse livro é apenas a etapa mais recente dos meus estudos semióticos e de sua aplicação na linguagem da canção. Como se sabe, a semiótica é a ciência que descreve a construção do sentido nas diversas linguagens (cinema, teatro, música, artes visuais etc.) e eu sempre a apliquei na canção brasileira, mostrando que essa linguagem tem pouco a ver com as linguagens musical e literária, conforme habitualmente se pensa.
Qual a importância de estimar canções, do ponto de vista do afeto e do ponto de vista de “mensuração”, como o livro sugere?
LT: Esse título, Estimar Canções, comporta um jogo de palavras que me parece sedutor. Sem desprezar o significado mais óbvio desse verbo (gostar de algo), já que em geral a gente analisa aquilo que gosta, “estimar”, na acepção utilizada no livro, corresponde a “calcular” o tanto de musicalização, oralização, tematização e passionalização que o compositor investe em cada canção produzida. Normalmente, ele começa pela melodia, estabelecendo padrões harmônicos e rítmicos que dão a “levada” da futura canção. Logo em seguida, começa a pensar na letra e, a cada verso criado, a linha melódica musical se transforma em linha entoativa ou prosódica, na medida em que gera um modo de dizer a letra (como em nossa fala cotidiana). Ou seja, acrescenta um tanto de oralização ao que era apenas musical, como se fosse uma receita culinária. Se acrescentar oralização, a canção pode virar um gênero mais falado, como o rap por exemplo. Se insistir na pureza musical, a canção pode adquirir traços do jazz ou mesmo da nossa bossa nova dos anos 60. A linguagem cancional prevê esses extremos. Esses “temperos” podem também levar a composição para os gêneros em que prevalece a recorrência de motivos melódicos ou mesmo de refrão, como acontece com as antigas marchinhas, com os sambas carnavalescos, os baiões e xotes festivos, a música axé etc. Essas melodias se compatibilizam com letras de exaltação de algum conteúdo (a própria música, o amor, a atitude pessoal, a terra natal etc.) e se alimentam do que eu chamo de tematização. Podemos ter melodias desaceleradas que estendem a duração das notas sem formação clara de motivos e que servem para veicular conteúdos passionais, de busca do objeto desejado (caso dos boleros, sertanejos, sambas-canções e música romântica de toda sorte). São as canções passionais. Em geral, no decorrer das composições, os autores musicalizam, oralizam, tematizam e passionalizam, dosando suas proporções de acordo com o objetivo adotado. Nesse sentido, estimam, calculam o tanto de recursos que devem ser empregados em cada obra.
Quais os parâmetros você usou para estimar as canções?
LT: Os parâmetros são os mesmos que utilizamos para apreciar qualquer conteúdo que entra em nossa vida: o mais e o menos. Esses elementos produzem combinações interessantes. Por exemplo, estamos vivendo uma crise imensa no Brasil, na qual a diminuição (ou seja, o menos) tomou conta de quase todas as áreas (menos riqueza, menos projetos, menos honestidade e por aí vai). Um novo governo sabe que dificilmente poria o país num nível de mais. Ele terá que se contentar com menos menos, valor que a semiótica chama de restabelecimento (e o povo chama de menos pior). Caso o processo engrene, poderemos entrar numa zona positiva de mais mais (um recrudescimento), como já tivemos na década passada. Às vezes, o excesso de desenvolvimento, por ser exorbitante, pede atenuações (como vem ocorrendo com a China, por ex.). Nesse caso, temos menos mais. Por fim, um país em franca decadência (talvez a Venezuela ou a Síria estejam passando por isso) vive a condição de mais menos, uma minimização. Esses cálculos são subjetivos (não matemáticos), mas definem nossas apreciações sobre todos os acontecimentos da vida. Por isso disse anteriormente que, na composição de canções, os autores dosam mais ou menos música, mais ou menos fala, mais ou menos tematização e mais ou menos passionalização. Dessas estimativas saem as canções.
De que maneira a semiótica pode nos ajudar a entender as canções populares?
LT: Como a semiótica estuda a construção do sentido nas diversas linguagens, seus conceitos podem ser aplicados também à canção, conforme exemplifiquei nas respostas anteriores. Esse trabalho com as quantificações subjetivas é uma conquista da semiótica atual.
Como explicar para um leigo os pressupostos teóricos que você usou no livro?
LT: Os livros de pesquisa (como este) servem justamente para explicar aos estudantes e aos leigos interessados como o sentido se forma. Enquanto somos leigos, vivemos o sentido, mas não sabemos como ele se configura. Aliás, ninguém precisa de semiótica para viver o sentido. Todos nós sabemos decodificá-lo. A semiótica é para quem quer compreender a sua construção por meio das linguagens. É como a gramática da nossa língua. Todos nós a utilizamos, mas cabe aos gramáticos explicar como ela funciona.
Que tipo de conteúdo uma leitura como essa pode trazer ao leitor leigo?
LT: Esse livro traz um enfoque sobre a canção que em geral não é considerado. Por exemplo, é comum que se avalie canção do ponto de vista musical, o que pouco ajuda a nossa compreensão sobre essa linguagem. Os quatro “ingredientes” que destacamos (musicalização, oralização, tematização e passionalização) atuam simultaneamente, muitas vezes, dentro da mesma obra. Essa perspectiva pode relativizar a visão musical e mesmo a visão literária. Há muita gente que ainda pensa que letra de canção é poema e que Chico Buarque é um grande poeta. Só que o próprio Chico reitera que jamais escreveu um único verso que não partisse da melodia. Fazer letra é criar compatibilidade com o componente melódico. Isso pode gerar efeitos poéticos, como num filme, numa peça de teatro, mas decididamente não interessa ao cancionista fazer poesia. Coisas assim podem ser esclarecidas nessa leitura.
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