Ubiratan Brasil | Estado de São Paulo | 26 de abril de 2014
Para autor, é fundamental na obra de Machado de Assis a presença da peça de Shakespeare
Em sua pesquisa sobre a importância de Shakespeare na obra de Machado de Assis, José Luiz Passos fez importantes descobertas. Percebeu, por exemplo, que o autor brasileiro se refere a Otelo ao menos 30 vezes em sua obra. “Ele tenta reescrever Otelo em vários contos, flerta com isso em Ressurreição, no qual cita lago, até atingir o auge em Dom Casmurro“; observa ele, lembrando de uma obra clássica dos anos 1960, O Otelo Brasileiro de Machado de Assis (Ateliê), em que a americana Helen Caldwell traça um perfeito paralelo entre Otelo e Dom Casmurro, a ponto de se fazer pensar que Capitu, assim como Desdêmona, é inocente na traição.
Em seu livro Romance com Pessoas, cuja primeira edição saiu em 2007, José Luiz Passos torna precisa ainda a afirmação de Machado ser o grande nome da literatura brasileira no final do século 19; época dominada por escritores românticos, como José de Alencar, e naturalistas, como Aluízio de Azevedo. “Entre esses, Machado cria o que digo ser uma terceira via.”
Na época, aponta o pesquisador, havia dois modelos que dominavam o mundo da ficção. Um era o de Alencar, marcado por relações arquetípicas e valores ideais, como a virtude, a pureza, a vilania. “Os personagens eram marcados por valores absolutos, que determinavam traços de personalidade ou qualidades associados a valores sociais”, conta. “Havia também a fórmula naturalista, em que os personagens são resultantes de determinações muito maiores, e incontroláveis, de origem climática, racial, etc.”
E eis que Machado cria uma terceira via para o romance, uma outra maneira de observar, em que predomina uma descrição mais robusta do universo interior dos personagens, oferecendo-lhes uma psicologia plenamente individualizada.
“E como Machado faz isso? Optando por uma espécie de anacronismo deliberado e buscando na literatura do Renascimento (Cervantes, Shakespeare, Dante e Camões) determinadas maneiras de falar sobre valores humanos que pertencem à vida moral, ao mergulho do eu, ao terreno da dúvida, à avaliação do indivíduo, e à capacidade de fingir”, analisa.
“Com isso, adensa os personagens fazendo com que tenham uma relação complexa com o tempo, ou seja, que eles percebam que mudaram entre o começo e o fim da história.”
Gênio ou crápula. Exemplos não faltam. Em Iaiá Garcia, a protagonista se educa observando as outras pessoas dissimularem. “Ela começa como uma adolescente ingênua e chata e termina como uma mulher segura e informada pela desconfiança. Já Brás Cubas reconta a própria história de uma forma que, se o leitor confiar, descobre um gênio, mas, se desconfiar, encontra um crápula. O que esses personagens diferem dos alencarianos e naturalistas é um dinamismo moral, uma invenção machadiana para as letras brasileiras. Ele cria uma variante fundamental para a narrativa nacional que vai resultar no realismo psicológico.”
Na conversa que teve com o Estado, Passos revelou particular interesse pelas obras finais de Machado, Esaú e Jacó (1905) e, sobretudo, Memorial de Aires (1908). “Eles espantam o leitor, pois não têm a pirotecnia verbal e conceitual de Brás Cubas, nem o pathos trágico de Dom Casmurro, ou mesmo aquela alegria humana e às vezes farsesca de Quincas Borba. São romances muito sutis, pertencentes à fase simbolista de Machado.”
Futuro. Um dos planos do pesquisador é escrever sobre a relação de Machado com Henry James, sobretudo nas semelhanças entre Memorial de Aires e Os Embaixadores. “Aires é um personagem dentro do romance, pois se trata de um diário, mas a visão de mundo do narrador onisciente em terceira pessoa se cola de tal maneira à consciência de Aires que ela é uma perspectiva dele. É fascinante e é uma técnica literária também utilizada por James, em seu livro”, observa. “Ainda pretendo escrever sobre essa conexão entre a última obra de Machado com Henry James.”
Saiba mais sobre o livro O Otelo Brasileiro de Machado de Assis
Leia trecho de Romance com Pessoas