Fonte: Estadão
por Daniel Piza
Mais uma vez os livros de ensaio, crítica e história dominam a lista dos melhores do ano, mostrando que os romances andam fracos e a poesia continua marginal. Outra tendência que se confirma é a das reedições, tanto de ficção como de não-ficção, e é um tal de ler nos poucos suplementos literários restantes uma enormidade de matérias sobre clássicos e efemérides. Talvez eu não devesse me queixar, pois há muito tempo leio menos romances do que outros gêneros e estou sempre a criticar a carência de grandes livros do passado nas prateleiras brasileiras. Mas sinto muita falta de ler ficção atual realmente boa, ainda mais num ano em que Ian McEwan (Solar) e outros admirados não satisfazem; e fico pensando o que seria de nós sem o indefectível Philip Roth, que em Nêmesis fez outra narrativa tão curta quanto brilhante. Não à toa só se badala tanto o chileno Roberto Bolaño, morto há dez anos, cujo romance 2666 atravessei com alguma dificuldade, pelas muitas passagens banais.
No Brasil, afora uns imitadores de Bukowski e alguns bons contistas, ano que não tem Milton Hatoum, Chico Buarque e Bernardo Carvalho repercute pouco. Pelo menos em poesia tivemos Em Alguma Parte Alguma, de Ferreira Gullar, 80 anos, além das obras completas de Manoel de Barros, 93 anos. De resto, vivemos de livros de história, como o de Jorge Caldeira, História do Brasil com Empreendedores, muito menos chato do que sugere o título, e de alguns estudos sobre Machado de Assis, como O Altar & o Trono, de Ivan Teixeira, e Machado e Rosa – Leituras Críticas, bem menos abrangente do que sugere o título. E vivemos de reedições dos livros de Lima Barreto, Joaquim Nabuco e de A Barca de Gleyre, de Monteiro Lobato, que atraiu bem menos atenção do que a polêmica sobre a censura aos termos em que se referia à tia Nastácia. De estrangeiros, discutimos Os Embaixadores, de Henry James, e muita gente descobriu só agora os contos de John Cheever e Rodolfo Walsh.
O que me divertiu mesmo em 2010 foram os livros de e sobre arte. Duas edições são de uma beleza tamanha, em todos os sentidos, que não consigo parar de abri-las periodicamente: a caixa em seis volumes com todas as cartas ilustradas de Van Gogh e o mega-álbum Caravaggio – The Complete Works, duas demonstrações de que os livros em papel têm delícias visuais e táteis que nenhum iPad pode ter. Estudos clássicos como Arte como Experiência, de John Dewey, O Outono da Idade Média, de Johan Huizinga (não só sobre arte, mas também literatura), e A Arte Moderna na Europa, de Giulio Carlo Argan, foram enfim traduzidos, assim como O Pintor da Vida Moderna, de Charles Baudelaire, e as resenhas do mesmo Baudelaire e de John Ruskin em Paisagem Moderna. E o livro de memórias do grande arquiteto Tadao Ando não teve o destaque que merecia, num ano curiosamente carente de boas biografias.
Na fronteira cada vez mais explorada da arte com a ciência, aprendi com The Vision Revolution, de Mark Changizi, sobre as particularidades dos olhos humanos; Adam’s Tongue, de Derek Bickerton, e On the Origin of Stories, de Brian Boyd, sobre a importância fisiológica da gramática e da narrativa; Why We Cooperate, de Michael Tomasello, que mostra que a natureza humana não é só agressão ou erotismo; ePegando Fogo, de Richard Wrangham, sobre como “cozinhar nos tornou humanos”. E por que não acrescentar aqui o início das obras completas de Freud traduzidas por Paulo César de Souza? Um contemporâneo e conterrâneo de Freud, o jornalista (sim, jornalista “full time”) e pensador Karl Kraus, também passou a ser devidamente publicado, com seus Aforismos, num país onde não há antologias decentes dos melhores aforistas. É isso aí: poucas e boas reedições, releituras e, para quebrar a modorra, ensaios científicos. Mas é melhor viver disso do que de falsas novidades e velhas picaretagens.