Livro do século 2 que mistura narrativa surreal e sátira retorna às livrarias em edição ilustrada e com nova tradução
Fonte: Correio Braziliense – 8 de junho de 2012
Felipe Moraes
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Um certo livro do século 2 abre o jogo na introdução: “você não encontrará pela frente uma única palavra verdadeira. Nenhuma. Escrevo sobre fatos que nunca vi nem vivi. De que nem sequer ouvi falar. Sobre o que não existe nem jamais poderia existir”. O autor corajoso é Luciano, natural de Samósata (Síria). O livro, intitulado A História Verdadeira (Ateliê Editorial), direta ou indiretamente, é referência para a literatura fantástica e de ficção científica produzida adiante e influenciou autores como Júlio Verne. Mais do que isso, é um texto de sátira que brinca com ideias de filósofos e as grandes aventuras contadas na época de Homero. Ainda assim, a obra de Luciano é pouco popular.
“Mais até do que o sarro, a liberdade despreocupada ainda é uma lição aos dias de hoje, quase 2 mil anos depois. Desde entregar a ‘falsidade’ da narrativa na introdução, as viagens absurdas da Parte 1 até as piadas com Platão, Sócrates, estoicos e demais correntes na Parte 2, Luciano não tem freios”, diz Gustavo Piqueira, que assina uma tradução “relativamente fiel”. Que os puristas tenham calma, porém. O escritor e ilustrador explica, nas primeiras páginas, que ao material original, fora as imagens assinadas por outros três artistas gráficos, “nada foi suprimido, nada foi acrescentado”. Ele é tão irônico quanto o próprio Luciano.
Saga humorística
Passado o prefácio, o escritor de Samósata relata, em primeira pessoa, uma viagem motivada pela curiosidade de saber “onde acabava o mar e quais os habitantes que por lá encontraria”. Com uma tripulação de 50 homens, ele desbrava ondas e resistia a tempestades. Numa dessas, a comitiva era envolvida por um tufão, que erguia o navio, acredite se quiser, a 500 quilômetros de altura. A jornada, agora, é espacial. Após uma semana à deriva, os aventureiros gregos pousavam na Lua, ajudavam os curiosos habitantes — lá, homens nasciam de homens — a guerrear contra o povo do sol — tudo por causa de desentendimentos a respeito da colonização de Vênus pela Lua — e vivem histórias, de fato, inacreditáveis.
Tanto que Luciano, vez ou outra, reconhece que ninguém vai acreditar nele. “A gente tem que pensar no que ele escreveu considerando o contexto histórico, século 2, quando — ele dá a entender — ainda se tomavam muitos mitos criados na literatura (como a Odisseia, de Homero, muito citada) como verdadeiros. O livro é uma ironia quanto à essa crença”, explica Piqueira.
O tradutor não arrisca apontar trabalhos ou autores contaminados por A História Verdadeira, mas identifica vontades literárias semelhantes em outros títulos. “Quando você lê o Cândido, de Voltaire, por exemplo, é difícil não achar que o francês havia lido Luciano. O mesmo ocorre com Viagem à Lua, de Cyrano de Bergerac”, acrescenta.
Em parágrafos breves, mas lotados de detalhes, o sírio cria situações e seres bizarros. Os nativos da Lua têm olhos removíveis, e os bebês são fertilizados, não no útero, mas na batata da perna. Num dia de azar, em que os gregos aproveitavam a tranquilidade do mar, uma baleia de 500 quilômetros de comprimento engoliu os viajantes — com navio e tudo.
Os exageros têm propósitos mais humorísticos do que fantásticos. “Não acho que a influência do livro na ficção científica seja direta — creio que a obra é mais um precursora involuntária do gênero do que um cânone. O aspecto ficção científica me parece ter surgido muito mais como uma vontade de ‘vou escrever a viagem mais absurda possível’ do que ‘vou criar uma aventura interplanetária’”, delineia Piqueira.
Trecho de A História Verdadeira
“Cruzando o rio por um trecho raso, descobrimos as mais extraordinárias espécies de videiras. Brotavam da terra num tronco grosso e bem formado, mas, da cintura para cima, tornavam-se lindas mulheres (como nas pinturas que representam Dafne se transformando em árvore após ser capturada por Apolo). Seriam fêmeas perfeitas, não ostentassem ramos carregados de uva na ponta dos dedos e a cabeça coberta por vasta folhagem em vez de fios de cabelo. Logo nos saudaram, animadas. Algumas em lídio, outras em indiano, a maioria em grego. Beijavam nossas bocas, e aquele que era beijado imediatamente ficava bêbado. Só não nos permitiam colher as frutas de suas mãos, urrando de dor a cada tentativa. Algumas ofereceram sexo, e dois de meus homens que aceitaram o convite não conseguiram mais desvencilhar seus corpos após o ato. Transformaram-se também em planta, envoltos por galhos e enraizados ao solo.”