Na obra Por quê ler os clássicos?, Italo Calvino faz a seguinte afirmação: “Um clássico é um livro que nunca termina de dizer aquilo que tinha para dizer”. Isso significa que o clássico é uma obra aberta, em que os sentidos podem ser revistos a cada nova geração de leitor, de acordo com os valores do tempo em que está sendo lida. Mas essa inesgotabilidade de sentidos também pode ser associada ao fato de que a cada nova leitura que fazemos de um clássico termos a sensação que estar lendo uma obra nova.
Recentemente reli Moby Dick, pois daria um ciclo de palestras em que trataria justamente da importância de ler os clássicos, e pude comprovar essa máxima de Calvino mais uma vez. Passagens que não haviam chamado minha atenção em leituras realizadas anteriormente ganharam importância e, ao reler trechos que havia assinalado nas leituras feitas anos atrás, perguntava-me o motivo de aquele trecho ter sido tão importante outrora.
Com isso quero dizer que foi com a emoção de uma baleeira de primeira viagem que embarquei novamente com Ishmael a bordo do Pequod por algumas noites seguidas, relendo avidamente as aventuras do capitão Ahab em busca de Moby Dick. Mesmo conhecendo o desfecho trágico do romance. Na verdade, estava ansiosa por ler novamente os três dias de caçada que ocorrem nos capítulos finais, quando, em meio aos embates dos arpoadores sob o comando de Ahab, vence, majestosamente, a potência da natureza. Talvez goste dessa obra justamente por saber que as últimas palavras do obstinado capitão, ao lançar o arpão que selaria sua morte, são apenas a confirmação de que, se a única certeza que temos é a de que somos mortais, é preciso lembrar sempre que os embates enfrentados no decorrer da vida devem ser realmente significativos. Ainda que para outrem eles pareçam desprovidos de sentido, cada ser humano é singular e deve ter liberdade para escolher o leviatã com o qual quer lutar.
Cabe lembrar que muito do realismo presente em Moby Dick se deva ao fato de o autor dessa obra monumental, o norte-americano Herman Melville, ainda muito jovem ter embarcado como grumete em um navio em direção a Liverpool, na Inglaterra. Essa viagem permitiu que Melville descobrisse duas paixões que o acompanhariam pelo resto da vida: o mar e a escrita literária. Seu livro Redburn (1849) foi baseado nessa primeira experiência de viagem. Nele, o escritor denuncia a exaustão da vida a bordo. Três anos mais tarde, depois de inúmeras tentativas de sobreviver como escriturário e professor, embarca em janeiro de 1841 em um navio baleeiro, o Acushnet, que o levaria aos mares do Sul. Essa viagem, com duração de aproximadamente 18 meses, lhe forneceu os elementos necessários para escrever Moby Dick, dez anos depois.
Cansado da pesca de baleias, desembarca do Acushnet na ilha Nuku-Hiva, na companhia de um camarada, que o abandona dias depois. Convive com os moradores locais por algum tempo, até ser resgatado pela tripulação do Lucy Ann, um barco australiano.
Os primeiros livros de Melville, Typee: A peep at Polynesian life (Uma espiadela na vida da Polinésia, 1846) e Mardi (1849), foram inspirados nessas viagens. No primeiro, relata sua convivência com os nativos das ilhas Marquesas; no segundo, descreve sua vida a bordo do Lucy Ann. Uma das experiências relatadas em Mardi é o motim organizado pelos tripulantes, que reivindicavam o pagamento em atraso e melhores condições de vida a bordo, do qual Melville participou e que resultou em sua prisão no Taiti. Consegue fugir da prisão e chega a trabalhar como agricultor nessa ilha antes de retornar para Boston, três anos depois, como marinheiro, a bordo da fragata United States. Essas últimas aventuras foram relatadas no livro Omoo (1847).
Todavia, Melville escreveu sua obra-prima, Moby Dick, não no calor das viagens, mas alguns anos depois, em 1851. Diferentemente dos livros anteriores, nessa obra o que impera não é o espírito aventureiro e a prosa de fácil entendimento. Por trás da aparente caça à baleia branca, descortina-se um mundo simbólico, metafísico e denso, que não caiu no gosto popular. As vendas não atingiram o patamar esperado.
O escritor faleceu em Nova Iorque em 1891, aos 72 anos, e o mundo ainda demoraria pelo menos mais trinta anos para reconhecer sua genialidade literária. Isso porque, com o advento da Primeira Guerra Mundial, sua obra passou a ser vista como uma reflexão possível acerca do sombrio destino da humanidade. A luta constante entre o bem e o mal, tão presentes em Moby Dick, e a busca pela perfeição do caráter humano fizeram com que filósofos e escritores da segunda metade do século XX passassem a vê-lo como uma espécie de precursor do existencialismo.
O crítico inglês D. H. Lawrence, em particular, em ensaio de 1923, faz uma interessante analogia entre a obra e o desejo de domínio por parte dos norte-americanos. De acordo com ele, no momento em que a obra foi escrita os Estados Unidos lutavam por expandir suas fronteiras. Por isso, o que temos no romance são três raças selvagens, simbolizadas pelos três arpoadores de diferentes origens: Queequep, o ilhéu do Sul; Tashtego, o pele-vermelha da costa; e Daggoo, o negro, servindo sob a bandeira norte-americana, ao comando do capitão de um barco que representaria o mundo civilizado.
À primeira vista, o romance de Melville trata da perseguição obstinada de um capitão em busca do cachalote que lhe destruiu a perna em um embate em alto-mar. No entanto, o próprio narrador deixa claro que os reais motivos do capitão Ahab eram de outra ordem: “Havia poucos motivos para duvidar de que, desde aquele encontro quase fatal, Ahab nutrisse uma violenta sede de vingança contra a baleia, ainda mais terrível porque, em sua morbidez frenética, atribuíra a ela não apenas todos os seus infortúnios físicos, como também seus sofrimentos intelectuais e espirituais.”
Antes da caçada propriamente dita, o narrador Ishmael, único sobrevivente da trágica aventura, apresenta informações minuciosas sobre a região onde se encontra; a maneira como conhece Queequeg, o ilhéu dos mares do Sul, que será um dos principais arpoadores na caça à baleia branca. Detalhes sobre a equipagem do navio e a origem da tripulação; informações históricas sobre a caça à baleia e muitas outras vão preparando o espírito do leitor para a grande batalha que será travada em alto-mar.
Mais de uma centena de páginas antecedem a apresentação do grande capitão Ahab. Além disso, somente alguns capítulos depois de sua aparição é que a tripulação, e também os leitores, saberemos que o baleeiro Pequod foi equipado especialmente para uma perseguição a Moby Dick, e não para uma caçada rotineira a quaisquer espécies de baleia.
Dessa maneira, Melville vai enredando o leitor de tal forma em sua trama narrativa que, como os marinheiros recrutados pelo obstinado Ahab, já não se consegue desembarcar do navio. Passa-se a fazer parte dessa comunidade de baleeiros solitários que percorrem os mares por três anos, em busca desse monstro sagrado, sabendo-se, de antemão, que a essa missão estria fadada ao fracasso.
Mais um exemplo desse processo gradual de construção narrativa, que parte do geral até chegar no específico, pode ser verificado no capítulo intitulado “A brancura da baleia”. Nele o narrador discorre sobre o branco em suas diversas manifestações, passando pela delicadeza da camélia e das pérolas, pela coragem do destemido corcel branco, pela inocência das noivas em suas vestes nupciais – até chegar ao terror que aparições encobertas pela alvura dos fantasmas podem provocar, para sintetizar que, Moby Dick, o cachalote branco representava simbolicamente todas essas manifestações da brancura. Se, por um lado, o branco é apresentado neste capítulo como símbolo de pureza, da inocência e do poder divino; em contrapartida, simboliza também a palidez da morte e o horror das aparições sobrenaturais. É o vazio que tudo esconde.
O narrador Ishmael desenvolve reflexões em torno dos mistérios que o circundam ao entrar em contato com esse vazio, representado por Moby Dick, e empenha-se em entendê-lo por meio de questionamentos que não passam apenas pela razão, mas também pela sua fé, suas emoções e dúvidas. Por outro lado, o capitão Ahab ataca esse vazio e seu desejo é destruí-lo, ainda que assim acabe levando consigo toda tripulação ao encontro da morte.
Quando escreveu Moby Dick, Melville estava longe de saber que sua obra se tornaria um clássico, mas as impressões que Jorge Luis Borges apresenta dessa obra confirmam minhas sensações: esta é uma obra que vale a pena ser lida e (re) lida como um romance infinito. Escreve o escritor argentino: “No inverno de 1851, Melville publicou Moby Dick, o romance infinito que determinou sua glória. Página a página, a narrativa se engrandece até usurpar o tamanho do cosmos: no início, o leitor pode supor que seu tema é a vida miserável dos arpoadores de baleias; depois, que o tema é a loucura do capitão Ahab, ávido por perseguir e destruir a Baleia Branca; depois, que a Baleia e Ahab e a perseguição que fatiga os oceanos do planeta são símbolos e espelhos do Universo.”
*Atualmente, mora em Portugal e é doutoranda no Departamento de Estudos Estudos Portugueses, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É escritora e autora de obras didáticas e livros destinados à formação de professores. Mestre em Culturas e Identidades Brasileiras pelo IEB-USP e Bacharel em Letras pela mesma instituição, escreveu os livros Silêncios no escuro (Ateliê), História e Geografia do Nordeste (FTD), A lenda dos diamantes e outras histórias mineiras (Scipione), Festa no céu (Positivo), Asa da Palavra: literatura oral em verso e prosa (Melhoramentos), Um estudo sobre as obras clássicas de viagens e aventuras, Um estudo sobre as fábulas e os contos de fadas (Eureka), entre outros.