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O Avesso da Tela: corte, ponto

Renato Tardivo*

As duas operações mais básicas em um filme são a filmagem e a montagem. A primeira se refere à forma com que são feitos os registros, ou seja, à mise-en-scène – posição de câmera, efeitos de luz, interações entre os atores, cenários etc. Já a montagem diz respeito à escolha e à combinação das imagens. Dessas duas operações resulta o filme, uma narrativa que se vale de som e imagem e se constrói do encadeamento de quadros, planos e sequências. É, portanto, a sucessão de imagens, aliada ao código sonoro, que cria a nova realidade. Não se trata, contudo, de mera soma de registros. O encadeamento de imagem e som implica descontinuidade em sua percepção. Corte.         

Os 14 contos de Somente nos Cinemas, livro escrito por Jorge Ialanji Filholini, são cinematográficos por excelência. E não apenas porque tematizam o cinema em seus enredos, mas sobretudo porque se correspondem com a linguagem fílmica em sua forma. Nessa medida, as histórias tanto trazem o universo do cinema para o centro, por meio da metalinguagem e da intertextualidade, como também estabelecem diálogo com esse universo de forma indireta, sendo as narrativas resultado do imaginário e das fantasias das personagens.

Ainda, chama a atenção a recorrência de dois temas ao longo da coletânea: a ambiência ficcional – São Carlos, cidade do interior paulista – e a presença da morte. Falemos, primeiro, do último. “A morte é a vitória do tempo”, escreve o narrador-protagonista do conto “O Diário de JF”, parafraseando o crítico e teórico do cinema André Bazin (1918-1958). Mas, se as imagens pretendem imortalizar o que foi filmado, a operação, no limite, jamais se consuma. O filme sempre parte da tela preta e retorna a ela. E, durante a travessia, a morte se interpõe: nas transições, nos cortes, no que fica para trás, em tudo aquilo que o quadro não mostra.

Uma vez mais, forma e conteúdo coadunam-se. As frases do livro são curtas. Dissecam, pelo avesso, o universo retratado. Implicam descontinuidade em sua leitura. Há contos primorosos nesse sentido. “Projeto: Favela” é um deles. A narradora, responsável pela construção dos cenários, é chamada para um projeto, encabeçado por um gringo, e deve construir uma favela. “Cenários são atores sem fala”, ela escreve. O final do conto é arrebatador, ao trazer da invisibilidade personagens reais que, ao se apropriarem do cenário, inviabilizam a produção: “Uma criança me pede para ajudá-la a abrir a janela. Foi a primeira vez em que uma janela cenográfica teve uma visita do cotidiano sem roteiro e filmagem”.

“O Diário de JF” também apresenta um projeto que é abortado. Em forma de diário, o narrador-protagonista, um cinéfilo, relata o período em que realiza seu primeiro grande trabalho como assistente de produção. Metalinguagem e intertextualidade aliam-se, de modo que o conto encampa a potência do livro – o cinema na literatura; a literatura como cinema; vida que, motivada ao avesso pela morte, salta na tela: “Foi bonito. Uma pena, em meia hora vou morrer sufocado e todo vomitado ao lado dela”.

Retomando as duas operações básicas de um filme e transpondo-a para a literatura de Filholini, podemos propor que o enredo, os cenários e as personagens são trabalhados na chave da filmagem; já o encadeamento entre as frases, a combinação de elementos, a pontuação, isto é, a forma, que em última instância cria a nova realidade, é trabalhada na chave da montagem.

Nessa operação engenhosa de correspondência entre imagem e palavra, os cenários – universos forjados – são contaminados pela vida e, reversivelmente, São Carlos – cidade real – é transformada em cidade cenográfica: “Sanca é traiçoeira. Quando você está de boa, vem a cidade e na maciota te queima”. Por meio dessa ambiência, as personagens e, por extensão, o leitor têm a oportunidade de se prolongarem ao infinito, como também afirmava André Bazin a respeito da tela do cinema, na exata medida em que são visitados pela morte.

Campo e contracampo, literatura e cinema, avessos. Não é aleatório que o narrador do conto “O Eldorado” escreva: “Nunca mais sairia do Cine Joia. O avesso do cenário. O drama cinematográfico. Nenhum detalhe excluído da tela. A vida deveria morar em um filme”. Ponto. 

*Renato Tardivo é psicanalista e escritor. Professor Colaborador do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e doutor em Psicologia Social da Arte (USP). Autor, entre outros, dos livros Cenas em Jogo – Literatura, Cinema, Psicanálise (Ateliê/Fapesp) e do volume de microcontos Girassol Voltado Para a Terra (Ateliê). 

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