Por Renata de Albuquerque
Apesar de não fazer parte da lista de livros mais famosos do maranhense, O Coruja merece atenção do leitor interessado em conhecer o que existia na literatura brasileira do século XIX “para além dos clássicos” já consagrados pela crítica. A. A Ateliê acaba de lançar uma edição desse título, que faz parte da Coleção Clássicos Ateliê, com apresentação e posfácio de Maria Schtine Viana. A seguir, ela fala sobre a obra com o Blog Ateliê:
O que a levou a estudar O Coruja?
Maria Schtine Viana: Essa história já tem mais de uma década. Em 2009, quando estava em busca de um tema para estudar no mestrado, li a obra completa de Aluísio Azevedo, pois queria pesquisar o Naturalismo. A ideia inicial era trabalhar com O Cortiço, O Homem e O Coruja. Na entrevista de avalição do projeto no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), onde fiz o mestrado, os professores sinalizaram que Aluísio Azevedo merecia mesmo um estudo de fôlego, mas eu deveria fazer uma redução no corpus. A certa altura da conversa, falei sobre O Coruja e do impacto que tive ao ler esse romance. Acho que aquela conversa foi determinante, pois quando falei sobre O Coruja, senti meu próprio entusiasmo latente.
Depois, já sob a orientação do professor Fernando Paixão, lá no IEB, à medida em que lia e relia o romance para desenvolver essa pesquisa, mais compreendia que não só estava diante de um romance de grande envergadura, pela abrangência dos temas tratados na obra; mas também que era um romance pouco lido e estudado até então. Além disso, as raras edições da obra não eram boas. Durante os três anos do mestrado, comprei todas as edições que encontrei desta e de outras obras pouco conhecidas de Aluísio Azevedo, como O Japão. Fui montando esse acervo, que me ajudou muito, não só na redação da dissertação, mas também na escrita a nota biográfica do pósfacio desta edição da Ateliê, que contém também informações bibliográficas do escritor.
O Coruja não é das obras mais conhecidas de Aluísio Azevedo (por exemplo, O Cortiço é um livro que está sempre na lista dos livros de vestibular). Quais razões, em sua opinião, fazem dele um livro “menos lido” e “menos conhecido”?
MSV: Então, como disse anteriormente, este livro ainda não foi muito estudado e tem poucas edições. De maneira geral, os estudiosos costumam dividir a obra de Aluísio Azevedo em dois segmentos. De um lado, estariam as de indiscutível qualidade literária, caso d’O mulato, O Cortiço, O Homem e Casa de Pensão; de outro, os livros produzidos ao “correr da pena”, destinados às folhas matutinas e, portanto, escritos para atender à demanda dos leitores de jornais. Acho que essa divisão contribuiu para que grande parte dos romances, relegada a esse segundo agrupamento, despertasse pouco interesse de estudo por parte da crítica. No caso da obra O Coruja, alguns estudiosos a condenam; outros consideram suas qualidades, mas ainda assim lamentam o fato de ela ter sido escrita apressadamente para ser publicada em folhetim. Entretanto, o que se percebe é que o romance sequer foi lido, pois a crítica, de maneira geral, é bastante repetitiva quando se refere a essa obra de Aluísio Azevedo, como aponto no ensaio de apresentação nesta edição da Ateliê.
Trabalhei durante muitos anos como editora e acredito que o editor deve não apenas lançar novos autores, mas também iluminar obras ou escritores que de alguma forma ficaram na prenumbra ou esquecidos. Então, quando recebi o convite do Plínio Martins e do José de Paula Ramos Jr. para essa edição d’ O Coruja, fiquei muito entusiasmada, pois seria uma oportunidade para lançar luz sobre uma obra pouco lida e, portanto, desconhecida de um escritor já consagrado pela crítica e pelo público leitor.
No seu prefácio para a da edição da Ateliê você fala sobre O Coruja ser um romance de formação “às avessas”. Poderia, por gentileza, falar brevemente sobre isso?
MSV: O termo Bildungsroman foi empregado pela primeira vez associado ao romance de Goethe, Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. Desde então, criou-se um signo literário de longa permanência na história da literatura, tendo em vista obras construídas em torno da formação do protagonista, ou romance de formação. Em Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, escrito por Goethe trinta anos depois, encontramos seu protagonista exercendo uma atividade prática como médico. Isso revela como o ideal de formação filosófico-humanista, apresentado no primeiro romance, é modificado para acompanhar uma transformação histórica.
Na literatura brasileira do século XIX, diferentemente do que se pode constatar nos países europeus, o romance de formação não encontrou muita ressonância. No entanto, O Coruja é um romance de formação, pois aborda a vida de duas personagens, André e Teobaldo desde a vida escolar, no internato, até a maturidade. Ainda que a trajetória das personagens centrais seja bastante diferente do percurso do protagonista goethiano. Teobaldo está longe de ter a energia e autodeterminação de Meister. O diletantismo da personagem aluisiana não lhe permite dedicar-se à sua formação plena e tampouco se especializar na profissão que escolhe na juventude, pois não chega a concluir o curso de Medicina. No entanto, apesar da dificuldade em dedicar-se a qualquer ofício, graças à sua origem aristocrática e às relações sociais, muitas vezes escusas, que estabelece com pessoas do seu meio, consegue alcançar um posto político significativo. Mas, ao final do romance, se dá conta da própria mediocridade.
André, por sua vez, a despeito de todos os seus esforços como intelectual, não consegue furar o bloqueio social. É estudioso e aplicado, mas sua falta de graça e excessiva timidez impedem-no de passar nos exames, embora soubesse todas as matérias. Consegue economizar para comprar uma escola, onde aplicaria suas ideias inovadoras sobre educação, contudo a relação com Teobaldo, para com quem se sente um eterno devedor, o impossibilita de realizar seus planos. No seu caso, a educação sentimental tampouco se realiza, já que não consegue desposar Inezinha. Única possibilidade afetiva que a vida lhe acenara.
Ao ler as duas primeiras partes do romance, até pode-se supor que a solidariedade estabelecida nos anos iniciais de convivência entre os amigos se estenderá nos posteriores, de maneira a contribuir para que o processo formativo de ambos seja bem-sucedido, mas essa possibilidade é desfeita na última parte da obra. Por isso, pode-se dizer que o pretenso processo formativo das duas personagens se vê malogrado, tanto quando analisamos a trajetória delas como ao observarmos os aspectos formais utilizados na construção narrativa.
A meu ver, O Coruja pode ser lido como um romance de formação, urdido sob o prisma do grotesco, considerando-se as forças históricas que dominavam à época. André é intelectual que, por mais que se esforce não consegue escrever a sua tão sonhada História do Brasil e nem construir uma escola de acordo com seus ideários pedagógicos. Nessa obra, Aluísio Azevedo não só aclimatou o Naturalismo à realidade brasileira, usando fartamente categorias do grotesco, como escreveu um romance de formação às avessas, subvertendo também o ideário postulado por Goethe. Talvez essa fosse a única possibilidade em um país escravocrata, às vésperas da Proclamação da República, que pouco significou em termos de mudanças estruturais. Essas hipóteses foram defendidas por mim na já referida investigação.
Entretanto, há muitas outras possibilidades de leitura. Os desastres provocados pelo fato de o personagem André ter como ideário a bondade, por exemplo. Elemento que Franklin de Oliveira apontou em um panorama que fez a obra de Aluísio Azevedo. Ele considera que O Coruja constitui ponto de transcendental importância na ficção brasileira, justamente porque Aluísio coloca como um dos temas centrais do romance “o problema da bondade que gera desastres”. Todavia, esses novos olhares sobre a obra só poderão acontecer se ela for lida, conhecida e comentada e esta nova edição poderá contribuir neste sentido.
Você pode falar um pouco desta edição?
MSV: Ainda não foi realizado nenhum estabelecimento de texto como o apresentado nesta edição da Ateliê, para o qual utilizamos como base um exemplar editado em 1898, mas realizando cuidadoso cotejo com o folhetim, publicado do dia 2 de junho a 12 de outubro, de 1885, no jornal O Paiz. Desta maneira, pôde-se incluir trechos que foram suprimidos na edição da Martins Fontes, que foi usada por muitos editores em lançamentos posteriores. Em alguns casos, essas supressões chegavam a comprometer o entendimento do texto.
Sob a orientação e em colaboração com o professor José de Paula Ramos Júnior, docente do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, USP, durante o estabelecimento do texto foi realizado cuidadoso processo de análise com o intuito não apenas de corrigir erros tipográficos, omissões de trechos, mudança de sílabas palavras ou períodos, mas, sobretudo, estabelecer o texto de acordo com o usus scribendi do escritor e da época. Portanto, respeitou-se o critério estilístico pessoal que orientava, por exemplo, o uso das vírgulas. Em favor da legibilidade do texto, foram feitas correções para não prejudicar o entendimento ou padronizar construções semelhantes em que a virgulação variava, mas sem prejudicar o estilo do autor.
Além disso, esta edição contém notas explicativas para esclarecer vocábulos raros ou em desuso, expressões de época, palavras em línguas estrangeiras, elucidar fatos históricos ou contribuir para a identificação de personalidades da época, como também referendar alguns critérios usados durante o estabelecimento do texto. Desta maneira, esperamos contribuir para dirimir os obstáculos à fruição da leitura e favorecer o entendimento desse romance ainda tão pouco estudado de Aluísio Azevedo.