Com quase 500 páginas, a segunda edição da revista Livro é analisada no texto a seguir por professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
.
Lincoln Secco | Jornal da USP
O nome da revista já é por demais sugestivo e simples: Livro, número 2. Tornou-se raro o primeiro número, belamente ilustrado e encontradiço somente nos alfarrábios e em poucas livrarias. Não estará na rede mundial de computadores porque os editores deliberadamente não se ocupam em digitalizá-la, deixando ao porvir a tarefa de fazê-lo. O leitor deste Jornal da USP, seja em seu meio privilegiado em papel de boa qualidade ou na internet, terá que ir ao lançamento ou encomendar este que é seguramente o mais belo periódico da atualidade dedicado a um objeto de tantos desejos, frustrados ou não: o livro impresso.
Lembremos que as últimas revoluções do livro impresso se sucederam freneticamente. Desde a era de Balzac, atravessando a primeira máquina rotativa para impressão, em 1846, o barateamento do papel e as inovações do mercado editorial no século XX, chegamos ao livro on demand, o qual mostra que a indústria livreira incorporou modernos (ou já velhos) processos fabris, como o just in time, salário por peça (terceirização) etc.
Mas há algo no ramo livreiro que não deixa de ser artesanal, a começar pela criação literária. Mesmo tendo deixado de ser manuscrita, a obra que se estabelece no tempo e integra o cânone de urna literatura nacional não pode ser feita em grande escala como os Best-sellers. Hoje só estudiosos de rodapés da história literária sabem quem foi Otavio de Feuillet ou Humberto de Campos, copiosos escritores do passado. Talvez destino semelhante aguarde muitos campeões de vendas atuais das livrarias. Mas também é possível que os futuros “livros de fast-food” se abriguem muito bem nos meios digitais (como o e-book) ao lado de obras acadêmicas restritas a círculos de estudiosos que muitas vezes só necessitam encontrar a citação precisa, o dado único e a referência exata e não ler uma obra integral.
O livro como o conhecemos hoje é o códice, o qual superou o rolo por volta de 400 depois de Cristo. Trata-se de um conjunto dobrado de folhas encadernadas. Nesse formato, tanto o manuscrito quanto o impresso ainda têm e terão um grande papel no futuro. Bem ou mal, a maioria das crianças precisa passar pela escrita manual, ainda que umas poucas escolas dos Estados Unidos já testemunhem o uso de microcomputadores na primeira infância.
É possível que seja assim para toda a população mundial algum dia? Esperamos que não. A lembrança de Jean-Paul Sartre da biblioteca do avô seria uma relíquia do passado: “Comecei minha vida como hei de acabá-la, sem dúvida: no meio de livros. No gabinete de meu avô, havia-os por toda parte. Eu ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas”.
Um bem valioso – Recentemente, o grande escritor alemão Günter Grass disse que o livro voltará a ser o que era até um século atrás: um bem valioso que se coleciona e se deixa como herança aos filhos. Um livro assim poderá ser encadernado com beleza. O prazer de ler tal obra continuará a ser estético e físico e encantará os olhos antes de as mãos, o olfato e talvez os ouvidos. É que ainda lemos e declamamos trechos de narrativas ou poemas em voz alta. Por fim, o prazer de todo o corpo permanecerá quando o leitor sentir uma vez mais o balouçar da carruagem que conduz Madame Bovary, por exemplo.
Mais uma vez é Sartre quem nos revela os usos e os múltiplos sentidos que uma leitura desperta: “Peguei os dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, abri-os negligentemente na ‘página certa’, fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-las. Tentei sem maior êxito tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los, surrá-los. Quase em lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: ‘O que queres que eu te leia, querido? As fadas? ‘ Perguntei incrédulo: ‘As fadas estão aí dentro?”‘.
E por que tudo isso? É que a revista Livro não só tangencia sentimentos como esses como se abre a uma pluralidade de linhas interpretativas acadêmicas e pelo respeito à divergência democrática de todo o debate político que o livro engendra. O anuário foi concebido por dois amadores de livros: Plinio Martins Filho e Marisa Midori Deaecto, professores do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Os títulos das seções da revista soam nos ouvidos depois de lidos: Conversas de Livrarias, Memória, Almanaque, Letra & Arte, Leituras e Debate, Acervo e Arquivo e um dossiê Artífices do Livro.
Embora rigorosa e pertencente ao Núcleo de Estudos do Livro e da Edição (NELE) da USP, a revista se preocupa pouco com as classificações de agências de pesquisa. Não que tais classificações não sejam reconhecidas. Todos os métodos de aferição de aprendizado e de qualidade e quantidade de pesquisa científica merecem reparos, discussões, mas também aperfeiçoamento e estímulo. Assim, a revista Livro é registrada, dotada de ISSN (International Standard Serial Number) e conta com o prestígio e a autoridade dos editores e da Universidade de São Paulo. Mas é carente de outras indexações que moldam as revistas acadêmicas e ditam o seu conteúdo através de simples determinações sobre a forma. Assim como é importante um periódico indexado, a revista Livro não é indexada por opção igualmente legítima de seus editores. Afinal, os periódicos (de divulgação, políticos, jornalísticos, fait divers, científicos etc.) têm públicos diferentes e formas e regras diversas.
A opção dos editores traz a imensa vantagem de permitir reflexões também daqueles que integram a cadeia produtiva e “improdutiva” do livro: livreiros, editores, escritores e, especialmente, buquinistas, ratos de sebos, amadores e amantes de livros, bibliófilos pobres, bibliômanos, andarilhos dos velhos centros urbanos, perscrutadores de bancas de jornais, professores provincianos, poetas amadores, procuradores de obras raras em feiras beneficentes, jovens radicalizados pela leitura em bancos de ônibus e até colecionadores sofisticados e entesouradores de livros.
Porém, a maior indagação que uma revista assim nos causa é: qual o futuro do livro? É que os meios digitais parecem ameaçá-lo com tiros de bytes, enquanto os editores desta revista insistem em se abrigar numa casamata de papel. Qual o destino dos livros impressos?
.
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP e autor de História do PT.
.