Oliviero Pluviano | Carta Capital | 7 de maio de 2014
RARAMENTE pensamos na morte. Existe um antídoto que nos impede de lembrar a todo instante que tudo acaba, que nascemos de un polvo (como os espanhóis chamam o momento da geração) e fatalmente voltaremos a ser poeira. É a mesma defesa psicológica a impedir que nos aterrorize nas noites estreladas a nossa condição de infinitésimos habitantes da Terra com os corpos celestes. Quem sabe esse remédio milagroso se chame vida? A morte dos outros passa perto de nós todos os dias: quem nunca viu um motoboy agonizando no asfalto em uma poça de sangue? Foi pensando nisso que segurei por um mês a mão da minha mãe doente. Sedada no hospital por um câncer, no último dia de sua vida acordou de repente, me acariciou e disse: “É uma pena, gostava tanto de viver” e mergulhou definitivamente no coma.
Estou lendo um livro delirante, mas extremamente lúcido, a Viagem ao Fim da Noite (1932) do gênio francês Louis-Ferdinand Céline, que afirmava saber demais e ainda não conhecer o suficiente. Ele também roça a morte quando escreve que “talvez a idade que se aproxima, traiçoeira, nos anuncie o pior. Já não há mais muita música para fazer a vida dançar. Toda a juventude já foi morrer ao fim do mundo no silêncio da verdade. A verdade é uma agonia interminável. A verdade deste mundo é a morte”.
O ex-embaixador italiano no Brasil La Francesca e eu nos especializamos em exploradores e viajantes italianos na América Latina do fim do século XIX e, como bons aposentados, viajamos livremente atrás de suas pegadas. Estivemos em um 4×4 no Chaco paraguaio, seguindo os passos de Guido Boggiani, pintor, fotógrafo e etnólogo, morto por um índio chamacoco em 1902 (veja O Som da Imagem de Carta Capital 766).
Também foi trágica e incomum a morte do conde Ermanno Stradelli, que chegou em Manaus em 1879 e terminou seus dias em 1926, sozinho e doente de hanseníase, no leprosário de Umirizal, nos arredores da capital amazonense. E pensar que apenas quatro anos antes produzira o único vocabulário do nheengatu, a língua geral dos povos da Bacia Amazônica, somente agora publicado pela Ateliê Editorial. Isso em nada lhe serviu para evitar seu dramático epílogo.
O calçadão da praça do Teatro Amazonas em Manaus, mostra desde os tempos de Stradelli aquele jogo de ondas em branco e preto que inspirou Burle Marx em Copacabana. Reproduz o encontro das águas claras do Rio Solimões com as águas escuras do Rio Negro. Para outros, representa a eterna luta entre a vida e a morte, o terrível duelo entre o bem e o mal. Mas será que são opostos?
Ao falar da morte, este meu texto sinistro só pode acabar com uma lembrança tocante de Claudio Abbado, em minha opinião o maior maestro de todos os tempos, falecido no dia 20 de janeiro aos 80 anos. Ele amava especialmente Carlo Gesualdo (1566-1613), “príncipe dos músicos”, senhor de Venosa, enigmático madrigalista da morte. Matou sua esposa Maria d’Avalos, considerada a mais bela mulher de Nápoles, e seu amante. Viu todos os seus filhos morrerem, e passou um ano entre a vida e a morte vítima do feitiço de uma bruxa. Disso tudo nasceu aquela obra prima tardo-renascentista que é Tenebrae. Ouça no YouTube a versão do quarteto Hilliard Ensemble, e você vai entender a predileção de Abbado por esse compositor da inquietude, inovador do cromatismo, precursor da decomposição tonal. Isso tudo envolto em um mistério mortal que ainda nos fascina…
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