Por: Renata de Albuquerque
Psicanálise e Literatura têm, desde longa data, uma relação muito próxima ao ponto que o psicanalista suíço François Ansermet disse que a literatura inventou a psicanálise. Édipo de Sófocles e Hamlet de Shakespeare fundamentaram a teoria psicanalítica desde o início. A crítica literária feita com o auxílio dos conceitos vindos da psicanálise resulta, não raro, em descobertas que ajudam o leitor a entender camadas mais profundas da ficção e a compreender significados, muitas vezes “escondidos”.
Em “Os Processos de Criação em À Sombra das Raparigas em Flor – A Pulsão Invocante e a Psicologia no Espaço em Proust”, o professor aposentado da USP de formação psicanalítica, Philippe Willemart, toma como base conceitos de Jacques Lacan e Pascal Quignard, “que insistem no lugar central da pulsão invocante nestas tentativas de captar o Real no ato da escritura e da leitura” para tratar do personagem Bergotte e pensar sobre um aspecto bastante específico da obra do autor francês na primeira parte de À Sombra das Raparigas em Flor, “Em torno da sra. Swann”.
“A riqueza da invenção proustiana consiste em contar com a dimensão temporal a sua maneira, isto é, esquecendo o fluxo cronológico do tempo. Parecido nisso com o que realiza o analisante no divã, o narrador mostra uma lógica dos acontecimentos que não depende das reminiscências no sentido platônico do termo, mas de uma memória simbólica ou lógica que, a partir de uma primeira lembrança, tenta se constituir”, explica Willemart na Introdução do estudo. O ensaio tem como origem as aulas ministradas aos estudantes do último ano da graduação em francês na Universidade de São Paulo.
Philippe Willemart, que já publicou diversas obras, é membro fundador do Laboratório do Manuscrito Literário ligado ao Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética (NAPCG) da Universidade de São Paulo e foi um dos fundadores da Associação dos Pesquisadores em Crítica Genética. Sua pesquisa tem como foco o manuscrito literário através dos manuscritos de Flaubert, de Proust e Bauchau. Ainda orienta doutorandos e pós-doutorandos, além de coordenar a equipe Proust de São Paulo e de fazer parte da equipe Proust do Institut des Textes et Manuscrits Modernes do CNRS (França). A seguir, ele fala sobre seu mais recente livro:
Quando começou a estudar Proust? O que o fez se interessar por ele?
Philippe Willemart: A obra de Proust consta do currículo de Letras Francesas da USP onde comecei a lecionar em 1976. Publiquei o primeiro livro Proust, poeta e psicanalista em Paris em 1996 e, no Brasil, pela Ateliê Editorial em 2000. Mas já tinha um interesse especial por Proust quando, em 1993, publiquei o artigo Les sources de l’art et de la jouissance chez Proust na revista de Universidade de Paris VIII Littérature. Como testemunham o título deste artigo e meu primeiro livro sobre a obra proustiana, Proust me parecia bem próximo das descobertas freudianas, o que suscitou meu interesse.
Por que a escolha por À Sombra das Raparigas em Flor e qual o motivo de um recorte tão específico, já que o senhor analisa somente a primeira parte do primeiro capítulo da obra?
PW: A primeira parte do livro é a transcrição das aulas dada na Universidade. Tinha publicado análises do primeiro e do último volume, No caminho de Swann e o Tempo Redescoberto em Proust, Poeta e psicanalista; em seguida, do terceiro volume, O caminho de Guermantes em Educação sentimental em Proust em 2002 e enfim, do quarto volume, a Prisioneira em Tratado das sensações em “A Prisioneira” de Marcel Proust em 2008. Faltavam o segundo, o quinto e o sexto volume. O segundo foi contemplado, mas o quinto e o sexto ainda são uma promessa. O recorte decorre do número de aulas limitado a 12 ou 13 num semestre.
Quais os processos de criação que Proust utilizou em À Sombra das Raparigas em Flor? O que diferencia esse volume do restante de Em Busca do Tempo Perdido em termos de composição?
PW: Há vários processos de criação que o leitor descobrirá nas análises. Citá-los tiraria a surpresa da leitura. Mas ficou claro que insisti na pulsão invocante explorada através do personagem Bergotte, diferenciando seu pensamento, sua voz e seu estilo que reflete a estética proustiana. Ressalto a segunda parte do livro que trata especificamente da crítica genética na qual tento entender melhor os movimentos da escritura através das rodas da escritura e da leitura. A teorização da escritura literária que estou construindo aos poucos permite mergulhar o manuscrito neste virtual imaginário e torna-lo mais inteligível com a nova abordagem.
Qual a contribuição dos cadernos manuscritos de Proust para a composição do volume que agora o sr. lança pela Ateliê?
PW: O estudo dos cadernos proustianos são fundamentais por vários motivos. Um deles é entender como não há um romance proustiano, mas vários não publicados porque abandonados, cada rasura corta uma evolução possível e encontra outro caminho para desenvolver a narrativa. Os rascunhos permitem distinguir o essencial da narrativa. É o caso, por exemplo, da substituição de Gabriel d´Annunzio por Anatole France, que sublinha a vontade do autor de destacar não a personagem histórica, mas a fama de qualquer homem ilustro que dá impressão do sublime ao herói. A adjetivação era importante e não o substantivo personagem. Os cadernos confirmam ou desmentem uma interpretação do crítico, mostram as hesitações do escritor que conseguem ou não se desligar dos hábitos e da tradição literária para a construção de uma personagem, lhe atribuindo qualidades que passaram em seguida, para outra. Também ajudam a entender o agenciamento dos episódios que de instáveis, aos poucos ficam estáveis e invariantes na narrativa e a constatar o afastamento progressivo da biografia do escritor no decorrer da construção do romance.
É comum o uso dos manuscritos como “material de apoio” à análise da obra proustiana?
PW: O uso dos manuscritos ainda não está generalizado, mas à medida em que os cadernos serão editados pela Editora Brepols de Turnhout (Bélgica), isto é, fotografados e transcritos, será até normal utilizá-los. Dos 75 cadernos, a Editora publicou até hoje os cadernos 26, 54, 71, 53 e 44. Mas todos são acessíveis em imagens embora não transcritos no site da Biblioteca Nacional de França no site : gallica.bnf.fr
Há um importante viés psicanalítico (com ênfase, salvo engano, em Lacan) na análise da obra de Proust apresentada neste livro. Quais são os aspectos psicanalíticos mais relevantes para o entendimento de À Sombra das Raparigas em Flor?
PW: Construí a roda da escritura apoiado nas pulsões descritas por Lacan, notadamente as pulsões oral e escópica que se referem à pulsão do ouvir ou invocante. O estudo do escritor Bergotte e do pintor Elsir comprovam a relação da pulsão com a arte de escrever ou de pintar.
Para este ensaio, o senhor utilizou apenas o original em francês ou também alguma tradução em português? Esta pergunta se justifica pois existe mais de uma tradução em português para À Sombra das Raparigas em Flor, uma delas, inclusive, feita por Mario Quintana. Sabendo-se do viés psicanalítico que sua análise da obra possui, qual a importância de tomar uma ou outra tradução específica para poder compreender os conceitos? Ou, ainda: é fundamental tomar o texto original, em francês? Quais as implicações da escolha por uma ou outra tradução?
PW: As aulas eram dadas em francês para alunos de francês; portanto, líamos apenas a edição original. Para a edição na Ateliê, usei a nova edição da Globo dirigida por um proustiano experiente, Guilherme Ignácio da Silva, ex-orientando, agora professor na UNIFESP, que, aliás assinou a apresentação do livro.
Por outro lado, acho fundamental trabalhar com o original sempre que puder, já que as traduções, por melhores que sejam, traduzem o embate entre dois universos culturais. A sonoridade da língua proustiana encanta quem sabe ouvir, o que a tradução dificilmente torna visível.