No dia 6 de novembro de 1985, duas pessoas se encontram no Café des Artistes, em Nova York, para uma entrevista. O entrevistador, um jovem pós-graduando que se tornaria um dos maiores poetas e professores literários do Brasil, o entrevistado, um já promissor escritor que, 13 anos depois, receberia o Prêmio Nobel de Literatura, sendo até hoje o único autor de língua portuguesa a ter a honraria. Esses dois seres-humanos sentados nesse recorte do tempo do título da obra eram Horácio Costa e José Saramago. Para celebrar o centenário do autor de Ensaio Sobre a Cegueira, Levantado do Chão, Memorial do Convento, entre outros, a Ateliê Editorial publicou a entrevista, ainda inédita, José Saramago – 6 de novembro de 1985, feita por Horácio Costa e com posfácio de Saulo Gomes Thimóteo.
Durante a conversa, os dois abordaram temas sobre a importância da língua portuguesa do século XVII na construção da literatura contemporânea, citando o período Barroco, projetos futuros, posições políticas, trechos musicais, a percepção da Contrarreforma na cultura, o trabalho do escritor com as palavras, pesquisa histórica e os textos portugueses, espanhóis e brasileiros.
Em seu texto de apresentação, Horácio Costa apontou: “O que me leva a regressar ao diálogo improvável entre o então jovem pós-graduando e o narrador em ascensão. O que ensinam os manuais de entrevista, amparados pelo senso comum, é que quanto maior a confiança entre as partes, entrevistador e entrevistado, maior a chance de que o resultado seja exitoso”. E concluiu: “Parece-me que isso se deu nessa noite de 6 de novembro de 1985 entre JS e mim”.
Especialista na obra samaguiana, Horácio Costa presenteia leitores e pesquisadores do autor de Caim e A Viagem do Elefante em uma conversa intelectual em que expõe um José Saramago em formação literária, em constante questionamento, em busca de frase musical, que melhor possa dizer o que quer dizer.
Horácio Costa é poeta, tradutor, professor e ensaísta brasileiro. Publicou, entre outros livros, 28 Poemas / 6 contos (1981), Satori (1989), O Livro dos Fracta (1990), The Very Short Stories (1991), O Menino e o Travesseiro (1998), Quadragésimo (1999), Ravenalas (2008), Ciclópico Olho (2011), além dos livros de ensaio José Saramago: O Período Formativo (Lisboa, 1997, Belo Horizonte, 2020 e México, 2003) e Mar Aberto (2010 e 1998, 1a. ed. em espanhol). Foi professor na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM); hoje, leciona Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP).
Leia um trecho da entrevista:
HC: Por que, afinal de contas, temos de no definir a partir da nossa própria tradição. E você encontrou a tradição dentro do século XVII.
JS: Eu não diria melhor do que foi dito agora. O que me parece é que devemos proceder a uma revisão daquilo que temos negado…
HC: Por macacos…
JS: Como macacos de imitação que negam porque veem negar. E não porque entendam ser os seus próprios motivos, uma razão para negar. Talvez venhamos a negar e podemos vir a negar, depois de termos compreendido.
HC: Depois do nosso ponto de vista ter sido assumido.
JS: Exato, exato. Isso é o que me parece que não tem sido até agora. Pelo menos em Portugal, Espanha. Creio, por aquilo que sei da Espanha, e não é muito, creio que a mesma coisa se passou. Mas no que toca a Portugal, isso se liga a uma velha, velha-nova, nova-velha, decantada questão, que nos últimos tempos se levantou em Portugal, que é a questão da identidade nacional. E geralmente, o problema da identidade nacional, a meu ver, é encarado lá de maneira um pouco simplista. E a mim parece que tem que ver muito mais com uma grande reflexão histórica, para a qual não estou de maneira nenhuma preparado. É na minha pequena área de romancista, mais por instinto, mais por percepção, mais por faro próprio. Mais por faro animal caçador do que outra coisa.
Confira falas de José Saramago durante a entrevista:
“Eu faço o possível para não me esquecer que entre o tempo de que falo e o tempo em que vivo houve um outro tempo de que eu sou também produto, sou filho desse tempo. É como se a cada hora eu tivesse como objetivo escrever totalmente sobre o passado”.
“A história para mim é um jogo de máscaras e o problema é, provavelmente, não chegar nunca ao rosto claro da verdade histórica”.
“A minha definição como escritor tem, afinal de contas, talvez muito mais a ver com o como do que com o que”.
“A memória tem uma função essencial (…). E não é a memória do vivido, é também a memória do vivível, daquilo que podia ter sido vivido e não chegou a ser. É, outra vez, corrigir o passado. Introduzir no passado aquilo que não aconteceu. Ou dar sentido àquilo que aconteceu”.
“Provavelmente o meu grande alimento, aminha estrutura, a minha base, o húmus de eu me alimento, no fundo, diria que tem quase que exclusivamente que ver com o que em Portugal se fez. O que a literatura portuguesa fez”.