Renato Tardivo
Filme de casa se exibe em casa
Santiago (2007), documentário idealizado e dirigido por João Moreira Salles, é um dos melhores filmes do cinema nacional da última década. O filme faturou prêmios importantes, incluindo o Festival Du Réel, em Paris – talvez, o reconhecimento máximo que um documentário possa receber.
No entanto, advertiu à época o diretor, Santiago entraria em poucas salas. É que a temática do filme é muito pessoal, e Salles julgava que apenas sua família iria se interessar. É sugestivo que, em São Paulo, Santiago só tenha entrado em cartaz no Espaço Unibanco e, no Rio, na Casa da Gávea (palco da própria história). Qualquer relação com a família Moreira Salles, nesse caso, não é mera coincidência: um filme de casa se exibe em casa.
A grande partida
Santiago, que dá nome à história, foi mordomo na mansão dos Moreira Salles – a casa da Gávea – por trinta anos. Sua personalidade afetuosa e extremamente peculiar marcou a infância dos filhos do patrão – Walther Moreira Salles.
Tudo começa quando, dez anos após ter deixado a casa da Gávea, João, um dos filhos, ao completar trinta anos, decide revisitá-la. Com sua câmera, ele volta ao lugar em que cresceu: a casa que se confundia com seu maior guardador, Santiago. É por isso que ele aporta também no pequeno apartamento onde o ex-mordomo passaria, aposentado, os últimos anos de sua vida. E colhe, em cinco dias, aproximadamente nove horas de um rico e belo depoimento.
Roteiro, decupagem, filmagem. Tudo ia bem… até a montagem. Na sala de edição o filme não funcionou. Não aconteceu. As imagens com Santiago foram captadas em 1992, mas o projeto foi abortado um pouco depois. Assim como um pouco depois morreria, aos oitenta e dois anos, o seu personagem: “a grande partida”.
Olhar encarnado
Cerca de dez anos depois, o documentarista retomou o projeto. E, então, o filme aconteceu. Porque Santiago não é o documentário pensado quinze anos antes: um projeto que, interrompido, é levado adiante do ponto em que parou. Em vez disso, trata-se de um documentário sobre o documentário que não houve. Sobre o filme que, na sala de edição, não aconteceu. O material de montagem do primeiro projeto dispara o trabalho de criação de um novo projeto.
Salles revisita a sua própria (não) produção.
Intrincado a esta fórmula, aos quarenta e poucos anos (não mais aos trinta), o documentarista retorna amadurecido à casa da Gávea e ao riquíssimo universo de Santiago. Assim, ao voltar o olhar para o seu próprio projeto, ele não realiza um documentário – como seria antes – sobre o mordomo da família, senão sobre a sua própria vida (dele, cineasta). Daí o mergulho na figura de Santiago ser tão intenso, verdadeiro. Encarnado.
Imagens da memória
Os planos de Santiago – o homem – são “severos”, influenciados, segundo o diretor, por determinado cinema japonês. Mas essa severidade, que se volta sobre si mesma e é com frequência bem-humorada, não se limita às cenas com o ex-mordomo. Ela permeia todo o filme, esteja em foco Santiago, esteja em evidência, por meio da voz off, o narrador-diretor.
Tomando-se as partes pelo todo, não se demora a perceber que Santiago é um documentário severo. As imagens da memória são porosas. E em preto-e-branco. Poros que se infiltram em outros poros, memória que constrói mais memória, trinta mil páginas de histórias, da História. Nada mais coerente que o projeto abortado tenha servido de embrião para o documentário enfim concretizado. Um tocante retrato de processo.
Renato Tardivo é mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte pela USP e escritor. Atua na interface entre a estética, a fenomenologia e a psicanálise. Foi professor universitário e escreveu os livros de contos Do Avesso (Com-Arte) e Silente (7 Letras), e o ensaio Porvir que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê).