O suporte da comunicação escrita — do uso de rolos em papiro à descoberta do pergaminho e a invenção do códice — a partir da dobra do papel fixado em tábuas
Lincoln Secco | Brasileiros | 01.01.2013
O que é um livro? Uma reunião de significados dentro de um conjunto de folhas dobradas. Esta e outras centenas de definições seriam suficientes para conhecê-lo. Em seu belo Livro, Michel Melot procura compreender o livro como objeto. Foi esse conjunto de folhas dobradas, afinal, que venceu outros suportes do texto escrito por volta do século 4 (embora existisse muito antes) e chegou até nós perante nova ameaça: os meios digitais de composição e reprodução de textos. Ora, como o autor nos faz lembrar, livro, texto e escrita são coisas distintas. Na ficção científica de Ray Bradbury (Farenheit 451) há um mundo que persegue o livro para queimá-lo e só uma comunidade de memorizadores perpetua o texto sem a escrita.
O áudio-livro contém um texto e não signos impressos, por exemplo. A própria escrita sobreviveu em outros meios, que relutamos em chamar de livros: tabuinhas, pergaminhos, rolos e, agora, o e-book. Poderíamos chamá-los de livros simplesmente porque carregam textos? Haveria controvérsias, afinal o rolo (volumen) foi o “livro” durante séculos antes do códice (codex). Jesus apenas pregou e o única vez em que o vemos escrever, conta-nos Melot, ele o fez no solo. O que decerto nos faz lembrar o gesto de José de Anchieta no século 16.
Esse objeto que ainda hoje nos encanta venceu, é quase tudo o que sabemos. O Cristianismo entregou seu conteúdo a esse continente. E isso mudou profundamente a noção de livro porque a maneira de ler e a organização do texto em diversos rolos não levavam às mesmas potencialidades do códice. Neste, surgiram as anotações à margem, a pontuação, a separação entre as palavras, o distanciamento da escrita e da fala, a leitura silenciosa em bibliotecas, a leitura perigosa que esconde os pensamentos do leitor, a leitura extensiva com vários livros ao mesmo tempo sobre a mesa em vez da leitura ruminada, em voz alta, de uma vez só…
Michel Melot nos conduz assim a uma questão atual: seria o livro destinado a um fim? Temos diante de nós novas formas de leitura em tempo real. E, de fato, este não é o tempo do livro. Sem querer, o autor nos dá uma bela definição de seu objeto: “O livro tem lugar no espaço, mas ele instala sua leitura na duração”.
O livro, dizem seus amadores, não depende de novas tecnologias. Ele sequer precisa da leitura em certos casos. Como objeto, ele pode ser simplesmente venerado, folheado, colecionado, presenteado, roubado, enfim, amado.
Uma possível “história sexual do livro” o confirmaria. Embora o objeto livro seja uma palavra masculina em muitas línguas (ou neutra, como no alemão), Melot nota que para muitos leitores há uma relação sensual com a leitura que funde o corpo feminino com a materialidade do livro. Ao abri-lo, é como se desfolhássemos o corpo da mulher. Mas se o livro se torna necessariamente um corpo, por que não podemos imaginar o contrário?
J. C. Carrière conta a história de um tipógrafo que descobriu a infidelidade de sua mulher através da carta de um amante. Vingativo, o marido compôs os tipos da carta em sua prensa, atraiu a mulher, despiu-a, amarrou-a e imprimiu nela as palavras do seu amante. O corpo nu e branco tornou-se papel e ela se transformou em um livro para sempre. Afinal, eu poderia me perguntar: se eu escrevesse um texto no corpo da mulher amada, ela se tornaria um livro meu para sempre?
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Michel Melot nasceu em 1943 em Blois. Após ter sido diretor do Departamento de Estampas e Fotografias da Biblioteca Nacional, diretor da Biblioteca Pública de Informação do Centro Pompidou, Michel Melot foi presidente do Conselho Superior das Bibliotecas. Ele também é autor de La Sagesse du Bibliothécaire entre outros.