Alex Sens
Peço que se aproxime: não da tela; quero seus olhos brilhantes e curiosos, não manchados pela luz enfraquecida do cansaço. Peço que se aproxime da vontade de ler; que se aproxime da textura pegajosa que tem todo texto ao qual você se entrega e entrega o seu precioso e bruto tempo, sobretudo o tempo visual. Pedra preciosa é o seu tempo — cuidado com as pontas que lembram dentes de gelo colorido.
Eu poderia começar esse texto me apresentando: meu nome é Alex Sens Fuziy, nasci em 1988, um par de infinitos indicando o ano porque um único infinito não me basta. Eu sempre quero mais, embora a indecisão faça parte desse mais, prolongando-o como se prolonga uma bala ainda quente, cintilante e perfumada. Eis que meu nome é aquele, sou escritor e ganhei um importante prêmio literário em 2012. A síntese é fria, eu sei, mas o que menos quero é o eco da arrogância. Cito o prêmio não porque ele me enviou anjos que me elevaram a níveis artísticos antes inalcançáveis, mas porque ele me tirou do ócio criativo no ano passado, ou se preferir, ele me arrancou [sem qualquer cerimônia] de uma procrastinação aparentemente inerente que só quem escreve e necessita da palavra como alimento, música e vento pode entender.
Bem, eu não queria começar o texto daquela forma, mas comecei. A apresentação se deu sem muita necessidade, mas se você não me leu aqui anteriormente, há alguns anos, quando a escrita ainda se equilibrava na filigrana do tempo com medo de afundar num vão qualquer, agora você me conhece. Pelo menos um pouquinho, ou o que chamam de “básico”. Essa introdução não deve me apresentar, mas deve apresentar essa coluna despretensiosa que hoje se inaugura e deseja, bem como seu criador, fugir de qualquer categoria, de qualquer etiqueta, que quer apenas ser isso que é.
Assim, posso começar registrando um fato: logo no início do ano destruí um dicionário. Destruí um dicionário porque ele era muito silencioso? Impossível. Eu amo o silêncio dos calhamaços cheios de palavras. Era dicionário com milhares de verbetes, papel fininho da espessura de uma saudade já gasta, mas não foi nada pessoal. Porque a ortografia foi alterada, o bloco com mais de três mil páginas deixou a coluna se vergar num canto. Algum cupim feroz ou com fome linguística abriu um poço na capa dura e nele mergulhou em milhões de letrinhas impressas com cuidado e extensão laboriosa de vó. Inveja do cupim, que pode viver numa casa onde cabe um mundo.
Talvez destruir seja palavra com potência equivocada, que lembre combate, humores beligerantes, mãos fortes e olhares de ódio. Nada disso. Meu tipo de destruição constituiu apenas na retirada de algumas folhas, me valendo de um estilete amarelo. A cirurgia foi delicada e precisa; o medo de ferir aquele corpo retangular maior do que a velocidade com que as letrinhas caíam das folhas como uma chuva negra no silêncio do chão. Há tempos que eu queria cobrir as paredes de palavras, um papel que me abraçasse, que me chamasse a atenção para as suas vastas possibilidades. Então livre de culpa, puxei o dicionário, tirei as folhas em cujas linhas estavam aquelas palavras que fazem arder o coração, pincelei cola branca e cobri as paredes do quarto. Duas paredes. Em seguida vieram prateleiras e colmeias de madeira, os livros e a companhia de outros tantos milhões de palavras. Não só a companhia das palavras me inspira e me traz uma deliciosa, macia e íntima sensação de conforto, como puxar com as narinas o espírito de uma gorda taça de moscatel espanhol num dia frio, mas também a companhia dos livros. Eu preciso dos livros para escrever melhor, ler melhor e ser melhor — isso resume bastante o que significa para mim “se sentir em casa”.
Em Oslo existe um restaurante de comida mediterrânea, com bar e café, em cujas janelas, prateleiras e mesas baixas de madeira histórica se espalham livros de ficção em inglês e norueguês. Nenhum cliente, entre uma mordida num falafel apimentado, um gole de cerveja irlandesa e um mergulho de um pedaço de pão pita no hummus polvilhado de canela e cominho, escapa da visão dessas obras, que dividem o espaço com cartões postais coloridos, cartazes de mensagens positivas de Gandhi, avisos de shows, luminárias de tecido vermelho, caixas de papelão de jogos antigos, sofás verde abacate e uma lousa com os preços e a criativa senha do wi-fi (couscous). Embora o estímulo visual seja autêntico e intenso, os livros estão lá, como peça decorativa, como um amigo que te espera, como parte da atmosfera acolhedora do ambiente. Quase uma pequena biblioteca onde você também pode mastigar enquanto lê em silêncio ou joga uma partida de Quiz tentado a abrir um daqueles exemplares de Margaret Atwood ou Paul Auster, porque simplesmente as palavras apetecem mais.
Eu gostaria de viver num mundo em que os livros brotam de todos os lugares e são lidos e reconhecidos simplesmente como livros, não como objetos assustadores de um grupo elitizado ou peças de arte intocáveis e misteriosas. Livros por todo o mundo e para todo mundo.
Voltando à coluna, eu não quero verdadeiramente explicá-la. Eu espero que ela nunca precise de uma explicação definitiva. Será uma coluna livre onde você encontrará pequenos contos, ensaios, resenhas, pedaços de ficção misturados à realidade das crônicas, tudo muito despretensioso, porque escrever precisa ser exercício de libertação e de caminho aberto com a escavadeira da palavra corajosa. No excelente Letras e Memória — Uma Breve História da Escrita, Adovaldo Fernandes Sampaio fala, entre muitos sistemas de escrita, da escrita bustrofedônica, um sistema primitivo “em que as linhas se alternam em direções opostas, ou seja: uma linha vai da esquerda para a direita, e a seguinte da direita para a esquerda, como os sulcos do arado no campo, com ou sem inversão das palavras” — bustrofédon vem do grego βουστροφηδόν, algo como “boi voltando”, exatamente o que um boi atrelado a um arado faz ao chegar ao fim de um campo, dando meia-volta e refazendo o percurso no sentido contrário.
Esse é o coração da minha coluna: as sentenças e significados indo para todos os lados, fazendo seu próprio caminho, formando espelhos dos meus registros literários, refletindo o pensamento, a linguagem e até mesmo o silêncio das palavras todas.
Alex Sens Fuziy nasceu em 1988 em Florianópolis (SC), vive em Minas Gerais e é escritor. Publicou Esdrúxulas, livro de contos de humor negro e realismo mágico, seguido pelo livro artesanal Trincada. Teve contos e poemas publicados em sete coletâneas e em revistas literárias virtuais, assim como resenhas de livros e críticas em sites de jornalismo cultural. Seu romance de estreia O Frágil Toque dos Mutilados venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2012.
Alex,
obrigado. E parabéns.
Um abraço,
Calebe Morais
Que coração imenso, Alex Sens Fuziy! Sempre nos brindando com lindas palavras e muito sentimento. Te amo!