Clippings, Resenhas

Uma leitura do livro Deste Lugar, de Paulo Franchetti

Sibila | Solange Fiuza Cardoso Yokozawa |

"Deste Lugar", de Paulo FranchettiPublicado em 2012 pela Ateliê Editorial, Deste Lugar, de Paulo Franchetti, é um livro que faz diferença no panorama da poesia brasileira mais recente. Em lugar do pobre chocalho de palavras em que se converteu parte dessa poesia, seduzida por uma autorreferencialidade esvaziada de sentido histórico, o livro de Franchetti fornece a imagem de um homem movido por uma angústia ancestral e tentando responder a ela, consciente, entretanto, do caráter provisório das respostas.

Em um primeiro momento, parece tratar-se de um livro de poesia erótica, com a sexualidade amorosa transfigurada em cerimônia e rito verbal, em ritmo e metáfora. Mas talvez haja um impulso criador mais profundo na base desse livro, diante do qual Eros, com suas luzes e sombras, seria uma das principais tentativas de resposta, senão a principal, a julgar inclusive pelo número de poemas que reverenciam esse deus ao cultuar o erotismo dos corpos e a pessoa amada. Trata-se do tempo, ou melhor, da consciência da finitude e de como lidar com o irremediável supremo, a morte. É ela que, mitificada, espreita o casal em um momento de breve fulgor em que falavam de amor: “Ali falamos de amor, enquanto a morte/espiava da janela e o fim da tarde descia/sobre os corpos cansados” (p.22). Em um longo e significativo metapoema que dá a ver a oficina do poeta, a escrita em processo, lê-se: “Falam de amor estes rabiscos,/da ausência, da morte antecipada” (p.95). Em outro poema de ambiência onírico-medieval, os que entraram na morte “cozinham o coração morno/nas mãos em concha”, “Enquanto nós, que desde aqui olhamos,/evitamos com cuidado nos aproximar da casa/e caminhamos a esmo, com as mãos em concha,/com a morte dentro” (p.55).

A ideia de uma subjetividade diante do decurso do tempo já está posta na epígrafe de abertura, tirada de Watching the Wheels, de John Lennon: I’m just sitting here watching the wheels. Por um lado, a lyrics de Lennon sintetiza a situação recorrente do sujeito lírico dos poemas, o qual, em um lugar sempre delimitado, o espaço de onde vê, sente e fala, “deste lugar”, fica olhando conscientemente o movimento incessante do mundo. Por outro, a escolha de uma letra de música parece encerrar uma atitude despretensiosa, antilivresca e avessa ao eruditismo pedante, a mesma que está na base do modernismo, e que é significativa porque assumida por quem é conhecedor da melhor tradição lírica, por um poeta que é também crítico, respondendo por importantes ensaios sobre a poesia clássica japonesa, Camilo Pessanha, a poesia concreta, entre tantos outros. Nesse sentido, vale destacar ainda as citações de fontes bastante diversas que são incorporadas aos poemas e reconhecidas graficamente, por meio do itálico, como tais, numa estratégia que lembra as notas de The Waste Land, com as quais pretendia Eliot desarmar os críticos que o tinham acusado de plágio.

O sujeito que assiste conscientemente à passagem do tempo, que sabe termos entrado na morte desde que nascemos, em lugar de fugir a esmo da que carrega consigo, olha-a frente a frente e tenta encontrar experiências que instaurem um tempo livre da morte, um tempo de intensidades, que confira sentido a este estar aqui. A poesia, a literatura, as artes, todas são, de acordo com o antigo topos, uma tentativa de permanência diante do que é breve e passa. Entretanto, a poesia mais autêntica constitui uma possibilidade por excelência de superação de nossa condição de seres temporais, descontínuos, separados do mundo, na medida em que realiza, como propõe Emil Staiger (1975) ao descrever a essência lírica, uma fusão entre o eu e o mundo, o passado e o presente, uma vibração em uníssono com o todo, que deixa poeta e leitor livres, por instantes, do medo da morte, bem como em um estado de suspensão provisória que é também anulação da individualidade descontínua, antecipação da morte.

Mas se a palavra poética apresenta-se essencialmente como uma saída diante do irremediável, há outras experiências que também nos resgatam provisoriamente do tempo, ou definitivamente, se recriadas em ritmo e imagem. Três dessas experiências, intimamente ligadas, aparecem como núcleos centrais de criação dos poemas de Deste Lugar: a memória, o erotismo dos corpos e a natureza. Intimamente ligadas porque a poesia erótica é o memento de um grande amor e recupera amiúde, em conformidade com a tradição lírica, elementos da natureza para tratar o amor e a amada. Por sua vez, a memória pode estar espacializada em ambiente natural, como também só permanecem como objeto de uma memória saudosa os seres e as coisas e os espaços que amamos, as pessoas que nos amaram.

Se, desde os gregos, memória e poesia estão interligadas, já que a deusa da memória, Mnemósine, é também a mãe das nove musas que inspiram a poesia, a arte da criação, na modernidade, a recorrência literária insistente à memória pode ser lida como tentativa de instaurar uma experiência verdadeira em um mundo inautêntico, de que seria exemplar a obra monumental de Proust. Não é diferente com o poeta Paulo Franchetti, cuja filiação poética mais direta remonta à alta modernidade literária. Em Deste Lugar, não poucos poemas se alimentam da memória pessoal, dentre os quais vale citar uma das peças mais bonitas do livro:

Em algum lugar, o pomar
abriga: as horas
do dia, as raízes úmidas.
Voo de pássaro, quase audível
amadurecer.
Caem agora os abacates,
o orvalho nas teias
e a sombra dos cães
sob a lua cheia.
O terreiro da tribo,
intocado.
Brilham, mais doces,
as laranjas do lado do poente.
A mão que as colhia
e descascava.
Tenho andado à volta.
Sempre um pouco além,
ou atrás, ou antes,
o pomar, as longas
esperas, o tempo quieto.
Aqui, ali. Em toda parte. (p.92)

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Paulo Franchetti é professor titular no Departamento de Teoria Literária da Unicamp e presidente da editora da mesma universidade. Escreveu, entre outros, Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa. Seu livro de haicais, Oeste, representa uma das mais admiráveis experiências na recente poesia brasileira. Para a Coleção Clássicos Ateliê organizou também O Primo Basílio, Dom Casmurro e Iracema, estes dois últimos em parceria com Leila Guenther.

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