Além de pianista, Charles Rosen, que morreu dia 9 de dezembro, foi notável crítico de artes
João Marcos Coelho | O Estado de S. Paulo | 17.12.2012
“Quando conversam entre si, na maior parte do tempo, os músicos falam de prazer. Mostram uns aos outros passagens em que as qualidades harmônicas ou melódicas têm um interesse particular e onde há vozes interiores imperceptíveis à audição. Quando toca uma de suas obras queridas, o músico tende a valorizar as passagens preferidas. Mas acontece que essas passagens ganham mais em serem interpretadas sem ostentação, com discrição. A música é uma maneira de instruir a alma e torná-la mais sensível, mas só é útil quando também proporciona prazer, que se manifesta em todos os que abordam a música como uma necessidade imperiosa, tanto do corpo quanto do espírito. A música sempre foi escrita antes de tudo para agradar aos executantes do que ao público.”
Pincei estas frases escritas por Charles Rosen, que morreu no dia 9, aos 85 anos, porque elas revelam algumas das razões que fizeram da música e dos livros produzidos por esta mente brilhante um patrimônio da humanidade. Costuma-se atribuir tal status a obras arquitetônicas, maravilhas naturais. Mas, neste caso, vale o exagero. Certamente o mundo dos que gostam e vivem, subjetiva e/ou profissionalmente, de música empobrecerá muito daqui para a frente.
Se não acredita que isso é verdade, então leia qualquer um dos 28 ensaios de seu derradeiro livro, de 438 páginas, lançado em maio pela Harvard University Press: Freedom and the Arts. Pode começar com Western Music: A View from California, uma resenha feita em duas edições do New York Review of Books, em 2006, da monumental história da música de Richard Taruskin (6 volumes, 4.000 páginas, Oxford U. Press).
Rosen começa macio, dizendo que todo mundo razoavelmente interessado no assunto tem uma história da música em casa. As informações estão à nossa disposição, mediante uma simples consulta. Ledo engano, as histórias da música são apenas uma ficção conveniente, construída de vários modos e com os mais diferentes enfoques, a cada geração. Em seguida, desconstrói, em 40 páginas, a ideologia política e musicalmente conservadora de Taruskin, que envenena o seu projeto (Taruskin também escreve notavelmente bem e é polemista convicto).
O ensaio, como praticamente todos os 28 artigos, foi originalmente publicado na New York Review of Books (a revista Diapason, edição brasileira, n.° 2, de maio/ junho de 2006, publicou o ensaio em português. disponível em www.estantevirtual.com.br). No ano passado, após tomar conhecimento de um artigo resposta de Taruskin à sua resenha, Rosen contra-atacou com Modernism and Cold War. E desmonta o argumento de Taruskin de que o modernismo musical norte-americano foi promovido pelo governo dos EUA como propaganda da guerra fria. Taruskin acusa Rosen de ter se beneficiado deste programa ideológico, porque tocou patrocinado pelo governo dos EUA no início dos anos 1950 na Europa.
Se preferir ler algo de Rosen em português, então curta dois ensaios do livro Poetas Românticos, Críticos e Outros Loucos (Ateliê Editorial, 2004): Códigos Secretos, sobre o pintor Caspar Davi Friedrich e o compositor Robert Schumann e O Crítico Jornalista, Um Herói, sobre a produção de George Bernard Shaw como crítico musical.
Desde 1971, quando lançou O Estilo Clássico, Rosen, pianista excepcional, desenvolveu uma dupla jornada: de músico notável, tão dedicado a Bach, Mozart e Beethoven quanto à música do seu tempo (com destaque para Schoenberg e Elliott Carter, sobre os quais escreveu e gravou), acrescentou a de crítico musical e literário. Transformou-se num autêntico maître à penser, como diriam os franceses, de todos os que desejam se aproximar da música em prévias convicções ou teses, armados só com a inteligência e um profundo conhecimento do assunto. Brincalhão, dizia que começara a escrever livros no tempo livre que o piano lhe proporcionava.
A imagem que hoje se tem dele corre o risco de distorcer sua personalidade. Rosen era antes de
tudo um músico. Que, de repente, conseguiu o milagre de transformar em palavras tudo o que apreendera com os sons. A maioria dos ensaios do livro, como de vários anteriores, é de resenhas de livros ou efemérides. Transcende, claramente, este status. O chamado artigo de ocasião transforma-se em leitura obrigatória para todo tipo de público – provoca espanto nos que acham que conhecem o tema, leva pela mão, em linguagem fácil, e contamina irremediavelmente os que pouco conhecem o assunto com uma paixão avassaladora pela música.
Sedutor intelectual múltiplo, foi tão formidável na condição de critico musical, literário e de artes plásticas quanto em sua vocação original de pianista que estudou com um discípulo direto de Franz Liszt. Dividiu nas últimas décadas cada ano em duas metades: seis meses em seu apartamento de Paris, e outros seis em Nova York, as duas cidades que ele mais amava.
Você não consegue parar de ler seus textos porque, na verdade, ele se diverte enquanto nos deixa saborear seus inteligentes e inovadores passeios pelas artes românticas do romance, poesia, conto, pintura e música. Rosen quer ultrapassar o estágio da crítica como ato de julgamento e conquistar o estágio do exercício critico como ato de compreensão da obra de arte. E consegue isso de modo admirável. “Será que a crítica nos capacita a fruir melhor as obras? Até que ponto é capaz de nos dizer a respeito das obras algo pertinente que já não saibamos? Baseia-se ela em experiências com conhecimentos particulares ou está franqueada a todos os leitores, ouvintes ou espectadores? Se o profissional entende mais do que o amador leigo, qual é o valor desse entendimento?”
Estas são as questões de fundo que se propõe a responder em seus artigos em geral. Compreende-se a necessidade do crítico de desejar dizer alguma coisa original ou revelar um aspecto de uma obra que pareça completamente novo, diz esta mente brilhante que jamais barateia as questões, mas também jamais deixa a escrita escorregar para o hermetismo que afasta a maioria dos leitores potenciais. Ao contrário, todos podem curtir e sair culturalmente enriquecidos saboreando a graça e o profundo conhecimento com que maneja questões tão amplas como a da resenha da história da música de Taruskin, agora publicada em livro nos EUA – o ensaio ideal para você se aproximar do universo de Charles Rosen.