Renato Tardivo
Há mais de um século, Sigmund Freud, fundador da psicanálise, propôs a existência da sexualidade infantil. Como era de se esperar, houve muita resistência a essas ideias – e, ainda hoje, há muita discordância. O célebre trabalho de Freud em que elas aparecem são os “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade Infantil”, publicado em sua primeira versão em 1905.
Há mais de meio século, psicanalistas da primeira geração de pós-freudianos, talvez Melanie Klein mais notadamente, aprofundaram o conceito de pulsão de morte, inaugurado por Freud, ao afirmarem a presença de sentimentos como o ódio desde a mais tenra infância. O clássico Inveja e Gratidão, no qual Klein propõe que bebês vivenciam o ódio e a inveja, foi publicado em 1946. Polêmicas à parte, a assunção de que crianças podem ser más foi reconhecida pela humanidade ainda mais tardiamente e, ao que tudo indica, tem encontrado forte resistência até hoje.
Essas questões são o mote do perturbador A Caça, mais recente filme do dinarmaquês Thomas Vinterberg; cineasta pertencente ao movimento Dogma 95, do qual também faz parte Lars von Trier, diretor dos clássicos Dançando no Escuro e Dogville. Vinterberg consagrou-se em 1998 ao dirigir um dos filmes mais importantes do cinema contemporâneo: Festa de Família.
Em A Caça, que rendeu o prêmio de melhor ator na última edição do Festival de Cannes para Mads Mikkelsen, uma mentira propagada por uma menina, acusando um professor de creche (melhor amigo do pai dela) de abuso sexual, atinge proporções bárbaras.
O enredo de A Caça dialoga com outros filmes do movimento Dogma: a maldade extrema pautada pela injustiça (Dançando no Escuro), o caráter excludente de grupos (Dogville), a complexidade dos vínculos familiares (Festa de Família e Melancolia). Mas, nesse filme de Vinterberg, há a inclusão de um novo elemento: a infância.
A Caça não é um filme sobre sexualidade ou abuso sexual; é de agressividade que se trata. As dificuldades que a humanidade encontra para se abrir ao diferente e as tendências agressivas para manutenção da (suposta) ordem, isto é, a falta de compaixão pelo outro complexifica-se aqui ao se expor que nem as crianças estão imunes a tais feridas. Mas o filme não culpabiliza a infância. Em vez disso, A Caça é um tapa na cara de uma coletividade que, ao não elaborar questões primitivas, permanece infantilizada – e deixa esse legado para as gerações mais novas.
A questão no Brasil, vale dizer, é atualíssima, em tempos de debate sobre a pertinência da redução da maioridade penal. Adultos infantilizados resolverão o problema culpabilizando as crianças? No filme A Caça, desfeitos os mal-entendidos, a suposta reconciliação entre o professor e aqueles que o retaliaram é apenas mais uma forma de expressão da hipocrisia sobre a qual se pauta a sociedade. Nesse caso, não poderíamos pensar como uma saída analogamente hipócrita a caça a menores infratores? Seja como for, o filme de Vinterberg é uma daquelas (necessárias) obras que envergonham o espectador de sua condição humana.
A crítica me despertou o interesse pelo filme, mas poderia ser mais objetiva e menos politicamente correta e adjetivada.