Sempre que é preciso apontar um marco inicial do movimento de private press, o marco é a publicação de The Story of the Glittering Plain. De autoria de William Morris, o objetivo da obra era recuperar a beleza do livro, perdida em meio às tiragens cada vez mais apressadas e descuidadas da imprensa regular. Editado por Gustavo Piqueira, responsável pela introdução e revisão técnica, William Morris – Sobre as Artes do Livro traz à tona este tema. A seguir, Gustavo Piqueira, que com Samia Jacintho elaborou o projeto gráfico da edição, fala sobre ela com o Blog Ateliê:
Como surgiu a ideia do projeto de editar este livro?
Gustavo Piqueira: A ideia partiu do Plinio Martins Filho, a partir de uma coletânea de textos de Morris publicada em inglês, em 1982, intitulada “The Ideal Book”. A princípio meu envolvimento no projeto seria bem menor: eu me limitaria a escrever um posfácio e executar o projeto gráfico. A coisa começou a mudar quando, ao ler o conteúdo, percebi que alguns dos textos eram conferências proferidas por Morris com o auxílio da projeção de slides (slides ausentes da versão impressa do original em inglês) e que um texto comentando imagens que o leitor não poderia ver, sobre temas tão específicos como “xilogravuras de Um no século XV”, se constituiria em algo extremamente árduo e, para boa parcela de leitores, desinteressante. Do mesmo modo, senti falta de uma profusão de imagens mostrando a produção de Morris na Kelmscott Press, dele colocando em prática aquilo que pregava. Então, por conta própria, comecei a rechear o conteúdo com um vasto aparato iconográfico que passei a pesquisar. E esse trabalho foi tão intenso que acabou me levando a mexer em todo o resto: uma considerável revisão técnica na tradução, a troca do breve posfácio por uma introdução de maior fôlego, etc. No fim, quando me dei conta, havia transformado o livro quase que totalmente.
Para quem ainda não teve contato com o livro, poderia falar brevemente sobre o que foi o “Arts and Crafts” e o que ele representou?
GP: Muito mais do que um movimento calcado em pilares estéticos, o Arts and Crafts surgiu na Inglaterra como um arcabouço de princípios ideológicos em contraposição aos efeitos colaterais da industrialização que transformava o país durante o século XIX quando, em paralelo aos propalados benefícios do progresso, a produção em massa começava a ser associada à desumanização e o produto que saía das fábricas à materialização dessa degradação em forma de feiura. Assim, bebendo num passado idealizado do folclore inglês e da Idade Média, com suas guildas e artesãos, os partidários das “Artes e Ofícios” pregavam um retorno à valorização da manufatura, à valorização do homem por trás do objeto — inclusive em suas condições de trabalho. Enalteciam o processo de produção, defendiam a beleza não como ornamento fútil, mas como expressão da verdade: a verdade de seus materiais e execução, a verdade de sua identidade cultural particular.
Do Reino Unido, o movimento se espalhou por outros países da Europa e pelos Estados Unidos, com diversos graus de intensidade e originalidade. No entanto, a insustentabilidade de sua base fundamental — a negação da indústria — logo tornou-o obsoleto, com seu idílio medieval esmagado pelo horror da Primeira Guerra e sua frágil teoria solapada pelo modernismo, que, ao seguir na direção contrária e abraçar as máquinas, definiu o caminho a ser percorrido pelo século XX. A ruptura, contudo, não é tão profunda quanto se costuma avaliar: alguns membros fundadores da Deutscher Werkbund são oriundos do Arts and Crafts alemão. E, com Mies van der Rohe, Peter Behrens e Walter Gropius entre seus integrantes, a associação foi uma espécie de gênese da escola mãe do modernismo, a Bauhaus.
Já no século XIX havia uma preocupação com a volta da manufatura e com uma “industrialização desenfreada”. De que maneira esta discussão pode ser transposta para o século XXI?
GP: Penso que não é nem um pouco difícil encontrar alguns paralelos com o crescente incômodo gerado por nossa completa submissão à revolução tecnológica corrente, que também vem gerando uma reação no sentido de se revalorizar algumas práticas e saberes do fazer manual.
Qual a importância de William Morris para o design (e, em particular, para o design dos livros)? Qual o legado da Kelmscott Press para o mercado editorial?
GP: Morris buscou, na Kelmscott Press, elevar os princípios de composição e produção aos mais altos padrões, com alguns deles até hoje reverberando como paradigmas do “livro ideal” — principalmente a defesa da unidade visual da página, da integração de texto, imagens, ornamentos, mancha e demais elementos como partes de um único sistema. O “belo livro” seria a soma de todas as suas dimensões — nem só forma, nem só conteúdo. O modelo editorial da Kelmscott Press, assim como de todas as outras private presses do período, também frutifica até hoje — seja nas pequenas tiragens extremamente caprichadas de alguns livros (muitos deles artesanais), seja naquilo que denominamos como “editoras independentes”. Visualmente, porém, seus livros não parecem ter deixado herdeiros. Não há como passar incólume por um Kelmscott Chaucer, mas ele é admirado em sua opulenta excentricidade, não como algo que lançou as bases para o que hoje associamos ao “belo livro”. O fato é que, numa análise puramente formal, o programa estético que ele desenvolveu para a Kelmscott Press não deixou quase nenhum fruto visível no design do livro moderno. Suas fontes Troy e Golden nunca exerceram a influência por ele imaginada. O inconfundível design de página, em seu gritante contraste das margens com a pesada mancha de texto, também não. Nem a igualmente densa moldura ornamentada. Até mesmo a fonte Bodoni, que no livro ele classifica como possuidora de uma “feiura sufocante”, passou longe de se ver eternizada como o tipo mais ilegível já criado (outra de suas afirmações).
“Com todas as suas idiossincrasias, Morris sempre se mostrou muito coerente e devotado a um único deus — ao único deus possível: a sua, perdoe- me o termo um tanto desgastado, arte”. Quais são as idiossincrasias a que este trecho se refere?
GP: A produção de Morris foi tão prolífica que seria possível redigir biografias nas quais, aparentemente, trataríamos de pessoas diferentes: o idealista que imprimia seus próprios livros em casa, o designer que ditava a moda nos living rooms londrinos abastados, o radical líder socialista, o nostálgico medievalista, o bem-sucedido homem de negócios, o protetor do patrimônio histórico, o autor de literatura hoje classificada como fantástica… Penso que, ao se combinar todas essas possibilidades, é fácil entender o que eu chamo de idiossincracias e aparentes contradições em sua trajetória. Mas, como afirmo no texto introdutório, não considero isso um problema. Pelo contrário, do choque de tudo isso brotou uma produção extremamente original e consistente.