A pesquisadora Adélia Bezerra de Meneses, autora de Desenho Mágico – Poesia e Política em Chico Buarque e Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque, comenta faixas do novo álbum de Chico Buarque, Caravanas:
Dueto fornece o pretexto para uma parceria de intérprete com Clara Buarque, um belo e afinadíssimo dueto avô/neta. E é essa mesma parceria de gerações que aparece, desta vez no processo da composição, com Chico Brown, que compôs a melodia de Massarandupió e a enviou ao avô. Chico Buarque fez a letra e a ofereceu ao neto no dia do seu aniversário de 20 anos. Entre os jogos verbais costumeiros — … pió, piá, psiu — Chico Buarque desvela experiências da meninice do neto, toda a convocação de uma infância de praia e areia e música, de mar e seu xuá. Uma infância que, no desejo, deveria ser infindável, que na ampulheta do “relógio de areia” seria interminável: “Devia o tempo de criança ir se / arrastando até escoar, pó a pó / Num relógio de areia o areal de / Massarandupió.” Mas a canção chega ao fim, a infância também teve que acabar: “Ó mãe, pergunte ao pai / quando ele vai soltar a minha mão / Onde é que o chão acaba / E principia toda a arrebentação”. Efetivamente o pai já deve ter soltado a mão do piá, que cresceu. E é como músico que o bacuri crescido reencontra o avô, parceiro forte pra aguentar “toda arrebentação” da vida.
Em Blues pra Bia o eu lírico propõe-se a virar menina pra poder namorar a Bia, em cujo coração “meninos não têm lugar” : “Compus doce melodia / pra ela se enternecer / Rimei com melancolia / Meu dia a dia sem Bia / mas Bia não quer saber”.
Em Desaforos, abordando com humor , leveza e ironia o ódio das polarizações ideológicas, e que das redes sociais extravasou pra rua, estabelece-se um jogo entre ferir/ proferir/ desaforo: “E que até proferes desaforos pro meu lado”, levando-se em conta a ambiguidade do termo “lado”, que significa não somente “direção”. Porque Chico tem lado, contrário ao de quem o desacata, a dama “florescida num viveiro /E em salões que nunca vi(u)”, e a quem ele confessa que nunca beberam do mesmo regato.
Na mesma linha , em Casualmente, o eu poético, com sutileza e fina ironia, responde aos “Vai pra Cuba!” que sempre lhe atiram, contando ter ouvido uma canção … em Havana : “No volverá nunca más / la canción sentimental /Que casualmente em La Habana / escuché cantar a uma mujer /Como ya no veré / Otra vez nada igual”.
Mas é na canção Caravanas – que não por acaso dá título ao CD inteiro (assim como a canção “Construção” , de 1971, foi usada para nomear o disco saído nesse ano) – que Chico ascende ao nível épico. Caravanas já nasceu um clássico, uma obra prima, abordando com contundência uma questão que é modulação de antigo problema. Não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro assiste-se a uma maré crescente de xenofobia (de xenos = estrangeiro, e fobia = medo ), agudizada com a questão das migrações, dos deslocamentos humanos, dos êxodos de motivação política ou econômica, em todo o globo; e da exclusão social. Medo: medo do Outro diferente, seja ele mulato nordestino, preto pobre ou muçulmano — alguém que não tem nada a perder e que pode por em risco o espaço e os bens dos mais ou menos abonados. E que, demonizado, facilmente será confundido com um terrorista, apavorando a gente “ordeira e virtuosa”. Efetivamente, essa canção trata em primeira linha das descidas em grupo dos habitantes de morros e favelas do Rio de Janeiro para as praias da Zona Sul — sendo interpretadas na maioria das vezes como “arrastões”, provocando medo insano . E, carreada pelo título – Caravana vem da palavra árabe “qairauân” — virão as ambiguidades e os sentidos condensados do mar turquesa à la Istambul (trata-se do azul turquesa do mar do Rio de Janeiro, claro, mas não se pode esconder a raiz “turco” que a palavra embute ), ou de Arará que é mais do que uma favela carioca ( sabemos que o monte Ararat é, na Bíblia, o maciço localizado na Armênia, onde parou a Arca de Noé, após o Dilúvio), ou do Jardim de Alá — a presença árabe é dominante na canção.
É inevitável estabelecer-se um parentesco com Subúrbio, de 2006, em que Chico convoca a periferia do Rio de Janeiro para que tome a palavra, dizendo que lá “Não tem moças douradas / expostas” (alusão à “Garota de Ipanema”, de Vinicius e Jobim), “Não tem turistas/Não sai foto nas revistas”. E sobretudo, paroxismo da negatividade, verifica-se uma coisa que no início é apresentada no positivo (“lá tem”), mas violentamente negada na segunda metade da frase: “Lá tem Jesus, e está de costas”. É essa uma expressão de um potencial crítico extraordinário: apesar de a imagem do Cristo do Corcovado ser vista também do subúrbio, ele “está de costas” – com toda a simbologia do gesto e da expressão “dar as costas”. Mas é muito interessante que, em “Subúrbio” , Chico Buarque se proponha a dar voz a essa periferia – que fala pelo “rap”: “Fala, Penha/ Fala, Irajá/ Fala, Olaria/Fala, Acari, Vigário Geral/Fala Piedade / Fala Paciência… “ etc.
Volto a Caravanas: a alusão ao mundo potencialmente terrorista é inequívoca: “ Não há barreira que contenha esses estranhos /suburbanos tipo muçulmanos”. A estranheza do Outro que ameaça a minha zona de privacidade (e propriedade privada) tem que forjar bons motivos de exclusão: “diz que malocam seus facões e adagas / Em sungas estufadas e calções disformes”. E assim como acontece na literatura racista relativamente aos negros, em que se superdimensionam seus atributos sexuais para mostrá-los mais perigosos, aqui também, o diz-que-diz religa sexualidade e violência: “Diz que eles têm picas enormes / e seus sacos são granadas”. Além disso, alude~se aos “negros torsos nus” que deixam em polvorosa/ a gente ordeira e virtuosa que apela / pra polícia despachar de volta / o populacho pra favela / ou pra Benguela, ou pra Guiné.’ Chegamos aqui, inevitavelmente, ao núcleo histórico da exclusão social deste país marcado pela mola social da escravatura: com a alusão a Benguela e a Guiné, chegamos ao ponto inicial, que os versos finais da penúltima estrofe só fazem pontuar: “E essa zoeira dentro da prisão / Crioulos empilhados no porão / De caravelas no alto mar”. Voltamos ao tempo do tráfico de escravos, ao navio negreiro. No entanto, é do tempo atual, do tempo de agora , a invectiva “Tem que bater, tem que matar / engrossa a gritaria”., não? E aqui, numa fórmula condensada, é oferecida uma genealogia à raiva, uma ligação entre medo-raiva-covardia: “filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. A violência seria total, mas a canção finaliza com uma dúvida . em suspenso: “Ou doido sou que escuto vozes/ Não há gente tão insana / Nem caravana do Arará.” Será?