Utilizando a história da viola como moderadora das relações sociais presentes no nosso percurso de quinhentos anos, os ensaios e relatos sobre a cultura popular presentes no livro História e Cultura no Som da Viola: Ensaios e Relatos Sobre a Cultura Popular, de Ivan Vilela, criam, de maneira indagativa, fricções com o modo como são elaboradas as nossas metodologias de ensino.
Os leitores do Com a Palavra leram com exclusividade o trecho do capítulo Relações Humanas no Mundo da Viola, que faz parte da obra.
Relações Humanas no Mundo da Viola
por Ivan Vilela
Uma outra ação por mim empreendida durante a minha permanência como pesquisador do Projeto AtlaS, em Portugal, foi voltada à tentativa de interferir na maneira como os tocadores de viola se relacionavam entre si.
Chegando ao final da minha estada junto ao INET e a Portugal, a partir das entrevistas que já havia realizado e por ter participado de inúmeros encontros de violeiros e tocadores de viola, percebi que pairava entre eles um imenso desconhecimento musical acerca das práticas de seus iguais. E certamente o fator para tal desconhecimento não era a distância física que os separava, ainda mais em um mundo interligado instantaneamente pela internet. Percebi que tocadores de uma freguesia sequer conheciam os tocadores da aldeia vizinha.
Isso me incomodou porque, no Brasil, o que tirou a viola do restrito mundo das expressões ligadas a um imaginário rural e a trouxe fortemente para outros segmentos musicais, como a música clássica, o rock, a música popular e a música instrumental brasileira, foi exatamente o dar as mãos entre os tocadores, percebendo que um grupo de violeiros certamente teria mais força de exposição ante a mídia e ao público que atitudes individuais.
Nesse contexto, a minha geração foi a responsável não só pela expansão performática do instrumento como também pela sua inclusão nos cursos de instrumentos das universidades. Desde 2005, a viola figura no curso de bacharelado do Departamento de Música da ECA-USP. Esse acontecimento tem motivado outras universidades a abrirem semelhantes cursos, não sem uma certa resistência imensa do stablishment da música europeia, que domina as bases curriculares dos cursos superiores de música no Brasil.
A entrada da viola na universidade representou mais que apenas a entrada de um instrumento em um curso de música, representou a entrada do saber oral, do saber popular dentro do templo do saber escrito, sugerindo, assim, o fim da separação desses campos de conhecimentos, que jamais poderia ter acontecido séculos antes, haja vista o Brasil, até o fim do século XIX, ter sido um país construído a partir de uma transmissão predominantemente oral, aural e corporal, saberes ainda refutados ou vistos com reserva nas universidades da Europa e da América Latina.